Fonte:Bonum Certamen
Arnaldo
Xavier da Silveira
O problema maior não é saber se a assistência absoluta e
omnímoda do Espírito Santo seria em princípio possível. É claro que o seria. Na
verdade, contudo, Nosso Senhor não quis dotar São Pedro, o Colégio dos bispos
com o Papa, a Igreja enfim, de uma assistência em tais termos absolutos. Os
caminhos de Deus nem sempre são os nossos. A barca de Pedro está sujeita a
tempestades. Em princípio, nada impede que, sobretudo em períodos de crise,
documentos pontifícios e conciliares que não preencham as condições da
infalibilidade, possam conter erros e mesmo heresias.
Doce Cristo na Terra
1] Não sou sedevacantista. Nunca o
fui, embora um ou outro comentarista pouco atento tenha pretendido ver traços
de sedevacantismo no estudo sobre a possibilidade teológica de um Papa herege
que faz parte de meu livro “La Nouvelle Messe de Paul VI, Qu’en Penser?”
(Diffusion de la Pensée Française, Chiré-en-Montreuil, França, 1975). Com base
na boa e tradicional teologia dogmática, não vejo que, em relação aos
Pontificados dos últimos decênios, tenha sido teologicamente possível, em
qualquer momento, declarar vaga a Sede de Pedro (ver Paul Laymann S.J., +1635,
“Th. Mor.”, Veneza, 1700, pp. 145-146; e Pietro Ballerini, “De Pot.
Eccl.”, Roma, 1850, pp. 104-105). Se a Divina Providência me der forças,
publicarei em breve um estudo sobre os erros teológicos das teorias
sedevacantistas correntes.
2] Para todo católico cioso de sua fé, o Papa é o “doce
Cristo na Terra”, é a coluna e fundamento da verdade. No entanto, grandes
santos, doutores e Papas, admitem a possibilidade de queda do Sumo Pontífice em
erro, e mesmo em heresia. E não é de se afastar a hipótese teológica de que tal
queda se dê em documentos oficiais do Papa, e em Concílios com o Papa (ver “La
Nouvelle Messe...”, parte II, caps. IX e X, e ).
As palavras de Mons. Müller
3] Em 29 de novembro último, L’Osservatore Romano deu
a lume um texto de Mons. Gerhard Ludwig Müller, Prefeito da Congregação para a
Doutrina da Fé, ex-Santo Ofício, intitulado “Uma imagem da Igreja de Jesus
Cristo que abraça todo o mundo”. Comentando o Discurso à Cúria Romana de 22
de dezembro de 2005, em que Bento XVI declarou que o Vaticano II deve ser
objeto de uma “hermenêutica da reforma na continuidade” face a
uma“hermenêutica da descontinuidade e da ruptura”, Mons. Müller escreve
que a interpretação da reforma na continuidade “é a única possível segundo
os princípios da teologia católica”, e prossegue: “fora desta única
interpretação ortodoxa infelizmente existe uma interpretação herética, ou seja,
a hermenêutica da ruptura, quer na vertente progressista, quer na
tradicionalista. Estas duas vertentes têm em comum a rejeição do concílio; os
progressistas pretendendo deixá-lo para trás, como se fosse só uma estação que
se deve abandonar para alcançar outra Igreja; os tradicionalistas não querendo
alcançá-lo, como se fosse o Inverno da Catholica”.
4] Não quero aqui aprofundar certos pontos dessa declaração,
como a questão, já tão comentada e desenvolvida nos últimos tempos, da “hermenêutica
da reforma na continuidade” e da “hermenêutica da descontinuidade e da
ruptura”. Também não analisarei a frase em que Sua Excelência declara que
progressistas e tradicionalistas “têm em comum a rejeição do Concílio”.
Nada direi, igualmente, sobre o título dado ao texto de Mons. Müller, onde se
lê a expressão, hoje ambígua e suspeita nesse contexto, de “uma Igreja
de Jesus Cristo que abraça todo o mundo”. E, ainda, não glosarei o fato
histórico de que, afinal, depois de décadas, adveio uma condenação do
progressismo, condenação essa que, se tivesse força canônica, ou pelo menos se
doutrinariamente passasse a vigorar de fato na vida católica, no ensino dos
seminários, como critério para as promoções eclesiásticas etc., seria
alvissareira e prenúncio de tempos melhores, pois que o progressismo estaria
sendo violentamente proscrito, como herético, pelo Prefeito da Congregação para
a Doutrina da Fé.
5] Neste momento, quero apenas comentar a passagem onde
Mons. Müller declara que os tradicionalistas dão ao Vaticano II uma “interpretação
herética”. Sei que não se trata de um decreto da Congregação para a
Doutrina da Fé. Sei que ele não especifica quais as correntes ditas “tradicionalistas”
que condena, deixando assim expresso que são todas as que não aceitam
incondicional e integralmente o Vaticano II. Sei, por fim, que a orientação ora
adotada por Mons. Müller em relação a tradicionalistas e progressistas não é a
dominante em muitos círculos vaticanos, e sobretudo não é a de Bento XVI. Tudo
isso, contudo, não tira de suas palavras a enorme importância que têm.
Da gravidade extrema dessa condenação
6] Não se minimize, com efeito, a força dessa
condenação. A lógica se impõe: quem interpreta hereticamente um
Concílio Ecumênico é herege. Também não se diga que o fato não tem relevo por
não se tratar de condenação canonicamente formal. É grave que o Prefeito da
Congregação para a Doutrina da Fé haja dito o que disse. É grave que, para
ensaiar um primeiro anátema contra os tradicionalistas, ele se haja resguardado
atrás do biombo de “doctor privatus”, pois, se o mal é tamanho, como
seria interpretar um Concílio Ecumênico em sentido herético, não haveria a
Santa Igreja de pronunciar-se oficialmente? Não seria esse um dever de todo “custos
fidei” para com o povo fiel? Ademais, é de recear que doravante tais
maneiras de pensar e agir marcarão os procedimentos da Congregação para a
Doutrina da Fé.
7] Como ensina Santo Tomás de Aquino, “a heresia por si
se opõe à Fé” (S.Th., II-II, q. 39, a. 1, ad 3), e “hereges
são aqueles que professam a Fé de Cristo mas corrompem os seus dogmas” (S.Th., II-II,
q. 11, a. 1, c.). “A fé é a primeira entre todas as virtudes” (S.Th., II-II,
q. 4, a. 7, c.), “é muito mais grave corromper a fé, pela qual a alma vive,
do que falsificar a moeda, pela qual se atende à vida temporal” (S.Th.,
II-II, q. 11, a. 3, c.).
8] Do alcance da condenação. - O mundo
moderno perdeu a noção da fé, como perdeu a noção da gravidade da heresia. A
integridade da fé é o ponto de partida da vida católica. O herege formal não
tem a virtude teologal da fé, e, de si, está excluído da Igreja. A condenação
de Mons. Müller fez-se em termos genéricos e sintéticos. Dada a importância da
matéria, os atingidos pelo ato têm o direito de pedir sejam explicitados o
alcance e as consequências teológicas, canônicas e práticas que o anátema
teria, ainda que apenas “in sede theoretica”, caso fosse válido.
O desvio teológico fundamental de Mons. Müller
9] Texto de Mons. Müller sobre o Magistério. -
Na mesma declaração citada, Mons. Müller afirma que é princípio da teologia
católica “o conjunto indissolúvel entre Sagrada Escritura, a Tradição
completa e integral e o Magistério, cuja expressão mais alta é o concílio
presidido pelo sucessor de são Pedro como cabeça da Igreja visível”.
10] O pressuposto da condenação dos
tradicionalistas está portanto em que, segundo Mons. Müller, não pode haver
erro ou heresia em documento magisterial, quer pontifício quer conciliar, mesmo
naqueles que não preenchem as condições da infalibilidade. Com efeito, ao
proclamar o caráter indissolúvel da união entre Sagrada Escritura, Tradição e
Magistério, ele revela que concebe este último como garantido contra todo e
qualquer erro ou heresia. Ademais, ao não falar simplesmente em Tradição, mas
ao qualificá-la como “completa e integral”, Sua Excelência subentende
que a Tradição inclui os ensinamentos conciliares ainda que não garantidos pelo
carisma da infalibilidade; e que inclui, portanto, as “novidades de tipo
doutrinal” (ver item 13, adiante) do Vaticano II, que teriam assim força de
dogma, só podendo ser postas em dúvida ou negadas por hereges.
O Vaticano II e a infalibilidade da Igreja
11] Magistério extraordinário?
Segundo o Vaticano I, o Papa é infalível quando, ensinando para a Igreja
Universal, em matéria revelada de dogma ou moral, define solenemente
determinada verdade como devendo ser crida pelos fiéis. Conforme a doutrina
sedimentada pelos doutores, essas condições da infalibilidade papal aplicam-se, mutatis
mutandis, aos Concílios Ecumênicos, cujas definições infalíveis devem,
portanto, impor aos fiéis a obrigação estrita de professar as doutrinas assim
propostas. Ora, Paulo VI declarou repetidas vezes que no Vaticano II não foi
proclamado nenhum novo dogma do Magistério extraordinário. É o que os teólogos
de boa doutrina têm também afirmado à exaustão. Dessa forma, é absolutamente
perturbador para o fiel comum, e inaceitável por um pensador católico, o fato
de que Mons. Müller pretenda que no Vaticano II não pode haver nenhum desvio
doutrinário. Onde estará, nessa matéria, o fundo do pensamento de Prefeito da
Congregação para a Doutrina da Fé?
12] Magistério ordinário infalível?
Segundo o Vaticano I, é também infalível o “Magistério ordinário e universal”.
Para tal, a Igreja, em seu ensinamento quotidiano, há de impor uma verdade como
devendo ser crida, e deve fazê-lo não apenas por todo o orbe, mas também com
continuidade no tempo, de tal forma que se torne patente a todo fiel que aquela
verdade foi revelada e deve ser professada sob pena de abandono da fé. O
conceito de “universal” nesse contexto nem sempre é bem interpretado,
pois há quem o entenda como se indicasse apenas a universalidade no espaço,
isto é, em todo o mundo. Segundo esse modo de ver, todos os ensinamentos do
Vaticano II seriam infalíveis, uma vez que foram solenemente aprovados pelo
Papa, com a unanimidade moral dos bispos de todo o orbe. Na verdade, atos
magisteriais singulares do Papa e do Concílio, como ocorreram no Vaticano II,
não podem definir dogmas do Magistério ordinário, por lhes faltar a continuidade
no tempo e a consequente impositividade que vinculariam de modo absoluto a
consciência dos fiéis.
13] As “novidades de tipo doutrinal” do
Vaticano II. - Em 2 de dezembro de 2011, Mons. Fernando Ocáriz,
Vigário-Geral do Opus Dei e professor de teologia, publicou noL’Osservatore
Romano um artigo intitulado: “Sobre a adesão ao concílio Vaticano
II.” Ali se lê: “Houve no Concílio Vaticano II diversas
novidades de tipo doutrinal (...). Algumas delas foram e ainda são
objeto de controvérsias acerca de sua continuidade com o Magistério precedente,
ou seja, acerca da sua compatibilidade com a Tradição”. A
seguir, Mons. Ocáriz reconhece “as dificuldades que podem encontrar-se para
compreender a continuidade de alguns ensinamentos conciliares com a Tradição. [...] Permanecem
legítimos espaços de liberdade teológica para explicar de uma forma ou de outra
a não contradição com a Tradição de algumas formulações presentes nos textos
conciliares e, por isso, para explicar o próprio significado de algumas
expressões contidas naqueles trechos.” Veja-se a diversidade de tom
entre esse texto e a condenação lançada por Mons. Müller, embora Mons. Ocáriz
diga, logo a seguir, que “uma característica essencial do Magistério é
a sua continuidade e homogeneidade no tempo.” Em 28 de dezembro
daquele ano publiquei em meu site um artigo intitulado “Grave Lapso
Teológico de Mons. Ocáriz”, no qual defendi, como em trabalhos anteriores,
que “Jesus Cristo poderia, evidentemente, ter dado a São Pedro e seus
sucessores o carisma da infalibilidade absoluta. [...] O
problema não consiste em saber se a assistência do Espírito Santo, com tal
alcance absoluto e geral, seria em princípio possível. É claro que o seria. Na
verdade, contudo, Nosso Senhor não quis dotar São Pedro, o Colégio dos bispos
com o Papa, a Igreja enfim, de uma assistência em tais termos absolutos. Os
caminhos de Deus nem sempre são os nossos. A barca de Pedro está sujeita a
tempestades. Em resumo: a teologia tradicional afirma que consta da Revelação
que a assistência do divino Espírito Santo não foi prometida, e portanto não
foi assegurada, de forma assim irrestrita, em todos os casos e circunstâncias. Essa
assistência garantida por Nosso Senhor cobre de modo irrestrito as definições
extraordinárias, tanto papais quanto conciliares. Mas as monumentais obras
teológicas, especialmente da idade de prata da escolástica, revelam que é
possível haver erros e mesmo heresias em pronunciamentos papais e conciliares
não garantidos pela infalibilidade”. É o que ora reafirmo.
Três respeitosos pedidos a Mons. Müller
14] Profissão de fé católica. - Em
vista do referido texto do Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, peço
aqui que ele receba a profissão de fé, que ora faço, em tudo quanto
autenticamente ensina a Santa Igreja, nos seus dogmas do Magistério
extraordinário papal ou conciliar, e nos dogmas do Magistério ordinário e
universal. Afirmo minha plena aceitação das demais verdades da doutrina
católica, cada qual com a qualificação teológica que os doutores tradicionais
lhe atribuem. E repudio como teologicamente sem propósito e facciosa a acusação
de que incidi em heresia por apego à Tradição.
15] Do sentido e do alcance da condenação. -
Tendo em vista a necessidade de precisão num ato desse porte teológico, como é
a condenação, ainda que unicamente em sede doutrinária, de uma corrente de
pensamento de grande expressão em todo o orbe católico, peço a Mons. Müller que
indique melhor o alcance teórico e prático de seu anátema, segundo as
observações do item 8 retro. Ao formular este pedido, tenho também em vista a
salvação das almas simples, que abraçam com fé plena os dogmas da
transubstanciação, da virgindade de Maria antes, durante e depois do parto, e
todos os demais, mas que não têm acesso a distinções teológicas subtis, podendo
ter a fé abalada com a notícia de que o Prefeito do antigoSanto Ofício declarou
que os tradicionalistas, indistintamente, são hereges.
16] Da possibilidade de erro em documentos do
Magistério. - Como católico fiel, conhecedor da autoridade dos
Dicastérios vaticanos, e também como autor de escritos que têm não poucos
leitores, pelos quais me sinto de algum modo responsável perante Nosso Senhor,
julgo-me no direito estrito de pedir filialmente ao Prefeito da Congregação
para a Doutrina da Fé que declare, de modo formal, claro e específico, se é
falsa a tese que defendi em meus trabalhos retro citados, e que ora defendo, de
que é teologicamente possível a existência de erros e mesmo heresias em
documentos pontifícios e conciliares que não preencham as condições necessárias
para a infalibilidade.
17] Nestas vésperas do Santo Natal, invocando o Divino
Infante, Sua Mãe Santíssima e São José, padroeiro da Igreja universal, formulo
de público estas considerações e estes pedidos, em legítima defesa e cum
moderamine inculpatae tutelae, dado que pública foi a agressão.
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