Como tornar quadrado o círculo? Para uma análise abrangente do Instrumentum Laboris remeto à excelente análise de Matthew McCusker no site de “Voice of the Family”. Cinjo-me a algumas considerações relativas à abordagem do documento sinodal sobre o tema das coabitações extramatrimoniais.
O novo Catecismo da Igreja Católica, no n° 2390, diz que a expressão “uniões livres” (coabitações) “tenta camuflar situações diferentes: concubinato, recusado matrimônio como tal, incapacidade de se ligar por compromissos a longo prazo. Todas estas situações ofendem a dignidade do matrimônio; destroem a própria ideia de família; enfraquecem o sentido da fidelidade. São contrárias à lei moral: o ato sexual deve ter lugar exclusivamente no matrimônio; fora dele constitui sempre um pecado grave e exclui da comunhão sacramental “.
Pelo contrário, o Instrumentum Laboris sugere a ideia de que as coabitações extraconjugais não são ilícitas intrinsecamente, mas apenas “parcialmente” .
“No caso em que o amadurecimento da decisão de chegar ao matrimônio sacramental por parte de conviventes ou de pessoas casadas civilmente ainda esteja numa fase virtual, incipiente, ou de aproximação gradual, pede-se que a Igreja não se subtraia à tarefa de encorajar e de promover este desenvolvimento. Ao mesmo tempo, agirá bem se demonstrar apreço e amizade em relação ao compromisso já assumido, do qual reconhecerá os elementos de coerência com o desígnio criatural de Deus” (n° 57).
Tratar-se-ia, em uma palavra, de aproveitar a parte de bem que haveria no mal, ou melhor, de não considerar como “absoluto” nenhum mal. Há aqui uma confusão implícita entre o nível ontológico e o nível moral. Se no plano ontológico só o bem é absoluto, enquanto o mal é mera privação de bem, no plano moral o bem e o mal têm uma dimensão de absoluto que não pode ser ignorada.
Mas o documento é ainda mais claro nos parágrafos seguintes. As coabitações – afirma ele – não são ruins ou intrinsecamente ilícitas, mas “incompletas” em relação ao casamento, faltando-lhes apenas a “plenitude” (nn° 62-65). “O sacramento do matrimônio, como união fiel e indissolúvel entre um homem e uma mulher, chamados a aceitar-se reciprocamente e a acolher a vida, é uma grande graça para a família humana”. Mas a Igreja “deve ser também capaz de acompanhar quantos vivem no matrimônio civil ou convivem, na descoberta gradual dos germes do Verbo que aí se encontram escondidos, para os valorizar até à plenitude da união sacramental” (n° 99). ” A escolha do matrimônio civil ou, em vários casos, da convivência frequentemente não é motivada por preconceitos nem por resistências em relação à união sacramental, mas por situações culturais ou contingentes. Em muitas circunstâncias, a decisão de viver juntos é sinal de um relacionamento que quer estruturar-se e abrir-se a uma perspectiva de plenitude” (n° 102).
Que as coabitações extramatrimoniais não sejam consideradas ilícitas demonstra-o o fato de que, para o Instrumentum Laboris, elas não devem ser de nenhum modo condenadas. “A atitude dos fiéis em relação às pessoas que ainda não chegaram à compreensão da importância do sacramento nupcial deve manifestar-se principalmente através de uma relação de amizade pessoal, aceitando o outro como é, sem o julgar, indo ao encontro das suas necessidades fundamentais e, ao mesmo tempo, dando testemunho do amor e da misericórdia de Deus ” (n° 61).
“A mensagem cristã deve ser anunciada, privilegiando uma linguagem que suscite a esperança. É necessário seguir uma comunicação clara, cativante e aberta, que não moralize, nem julgue e nem sequer controle, mas dê testemunho do ensinamento moral da Igreja, permanecendo contemporaneamente sensível às condições das pessoas na sua individualidade” (n° 78); “uma comunicação aberta ao diálogo livre de preconceitos é necessária particularmente em relação àqueles católicos que, em matéria de matrimônio e de família não vivem, ou não se encontram em condições de viver, em pleno acordo com o ensinamento da Igreja” (n° 81)
O que está ausente no texto, mais do que uma condenação, é qualquer forma de julgamento ou de avaliação moral. No entanto, sabemos que não existem atos humanos neutros ou não passíveis de um julgamento moral. Cada ação pode e deve ser avaliada de acordo com o critério da verdade e da justiça, como São Paulo nos ensina a fazer (Rom, 1-26-32: 1 Cor. 6: 9-10; 1 Tm 1,9).
A abordagem sociológica e isenta de julgamento moral do Instrumentum Laboris é confirmada pela utilização dos termo “irreversibilidade” e “irreversível”, que na versão portuguesa ocorre três vezes, no tocante à situação dos divorciados recasados. Na verdade, um fracasso matrimonial pode ser irreversível, mas um estado habitual de pecado, como a coabitação, sempre é reversível. No entanto, lemos no documento: “É bom que estes caminhos de integração pastoral dos divorciados recasados civilmente sejam precedidos por um discernimento oportuno da parte dos pastores, a respeito da irreversibilidade da situação e da vida de fé do casal em uma nova união (…) segundo uma lei de graduação (cf. FC, 34), no respeito pelo amadurecimento das consciências” (n° 121). “Para enfrentar a supramencionada temática, existe um comum acordo acerca da hipótese de um itinerário de reconciliação ou caminho penitencial, sob a autoridade do Bispo, para os fiéis divorciados recasados civilmente, que se encontram em situação de convivência irreversível” (n° 123).
Se a situação dos divorciados recasados é em alguns casos irreversível, como pretende o Instrumentum Laboris, isso significa que também é irreversível a situação moral de pecado mortal público e permanente em que eles se encontram, excluindo-os, por isso mesmo, dos sacramentos da Penitência e da Eucaristia… a menos que se considere essa situação como não sendo pecaminosa, mas virtuosa. E esta é a linha que o documento parece sugerir. O casamento indissolúvel é apresentado como um ideal cristão elevado, mas dificilmente alcançável. Na vida concreta, as uniões civis podem representar fases imperfeitas, mas positivas, de uma vida em comum, que não pode ser separada do exercício da sexualidade. A união sexual não é considerada intrinsecamente ilícita, mas um ato de amor a ser avaliado segundo as circunstâncias. Uma relação sexual perde seu caráter moral negativo se os parceiros a mantiverem com convicção, de modo estável e duradouro.
O Instrumentum Laboris não nega tanto a Exortação Familiaris Consortio de João Paulo II (22 de Novembro 1981), quanto nega a encíclica Veritatis Splendor do mesmo Papa (6 de agosto de 1993), com a qual parece querer acertar as contas. A partir dos anos sessenta do século XX, difundiram-se no interior da Igreja as novas teorias morais de autores como o jesuíta Josepf Fuchs e o redentorista Bernhard Häring, que em nome do primado da pessoa sobre a natureza humana, negavam o caráter absoluto das normas morais, considerando-as apenas como uma necessidade de auto-realização (ver. por exemplo, o Padre Fuchs, The Absolutness of Moral Terms, in “Gregorianum”, 52 (1971) pp. 415-457).
Deste personalismo, que influenciou a constituição pastoral Gaudium et spes do Concílio Vaticano II (7 de dezembro de 1965), decorreram os erros do “proporcionalismo”, do “teleologismo” e do “consequencialismo”, explicitamente condenados pela encíclica Veritatis Splendor (nn. 74- 75).
Contra essas teorias têm escrito, de uma forma mais do que convincente, Ramón García de Haro (La vita cristiana, Ares, Milão, 1995) e, mais recentemente, Livio Melina, José Noriega e Juan Jose Pérez Soba (Camminare nella luce, i fondamenti della morale cristiana, Cantagalli, Siena 2008), reafirmando a doutrina dos absolutos morais, segundo a qual existem atos ilícitos que não podem ser justificados por qualquer intenção ou circunstância. A união sexual fora do casamento legítimo é um deles. “Os atos que, na tradição moral da Igreja, foram denominados «intrinsecamente maus» (intrinsece malum)” – estabelece a Veritatis Splendor – “são-no sempre e por si mesmos, ou seja, pelo próprio objeto, independentemente das posteriores intenções de quem age e das circunstâncias ” (n° 80).
Em seu discurso à Cúria Romana em 20 de dezembro de 2010, Bento XVI reiterou que uma ação má em si nunca pode ser aceita. Denunciando o crime de pedofilia, o Papa não refazia o fundamento ideológico numa “perversão fundamental do conceito de vida moral”. Ele afirmou: “Defendia-se – mesmo no âmbito da teologia católica – que o mal em si e o bem em si não existiriam. Haveria apenas um «melhor que» e um «pior que». Nada seria em si mesmo bem ou mal; tudo dependeria das circunstâncias e do fim pretendido. Segundo os fins e as circunstâncias, tudo poderia ser bem ou então mal. A moralidade é substituída por um cálculo das consequências e, assim, deixa de existir. Os efeitos de tais teorias são, hoje, evidentes. Contra elas, o Papa João Paulo II, na sua Encíclica Veritatis splendor de 1993, com vigor profético apontou na grande tradição racional da vida moral cristã as bases essenciais e permanentes do agir moral.”
Com essas palavras ficam pulverizadas as teorias do mal menor e da ética de situação. A discussão está toda aí. De um lado, os católicos fiéis ao Magistério da Igreja, que creem no caráter objetivo e absoluto da moral; e de outro os inovadores, que reinterpretam a ética com critérios subjetivos e relativistas, torcendo a Moral para conformá-la aos seus desejos e interesses. Há mais de 50 anos que se discute, mas agora se colhe o que foi semeado (Roberto de Mattei).
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