quinta-feira, 19 de novembro de 2015

O Concílio Vaticano II e a Liberdade Religiosa: Ruptura ou Desenvolvimento Autêntico?


Os autores de um novo livro sobre a "Dignitatis Humanae" sustentam que a Declaração baseia o direito à liberdade religiosa no dever de buscar a verdade, especialmente a verdade sobre Deus.


Por Carl E. Olson.

Um dos temas mais polêmicos e debatidos na Igreja durante e após o Concílio Vaticano II (CVII) é o da liberdade religiosa. Nos últimos anos, questões sobre a natureza, parâmetros e reconhecimento da liberdade de religião se tornaram mais cadentes nos EUA e em outros países ocidentais. No livro "Freedom, Truth, and Human Dignity" (Eerdmans, 2015), Dr. David L. Schindler e Dr. Nicholas J. Healy apresentam um exame rigoroso e detalhada da "Dignitatis Humanae", a "Declaração sobre Liberdade Religiosa" do Concílio, proporcionando uma nova tradução, um histórico da redação e uma rica e provocante interpretação do texto.

Dr. Schindler, que é professor da The Catholic University of America, e Dr. Healy, professor assistente da mesma universidade, responderam recentemente a questões formuladas por Carl E. Olson, editor de Catholic World Report, sobre seu livro, a "Dignitatis Humanae" e a situação enfrentada pelos católicos atualmente.

CWR: No prefácio de "Freedom, Truth, and Human Dignity", vocês sustentam que o livro "busca promover uma compreensão mais profunda da declaração sobre liberdade religiosa do CVII". Quais são as razões pelas quais tal compreensão é importante cinquenta anos após o Concílio?

Dr. Healy: A declaração sobre a liberdade religiosa, "Dignitatis Humanae", foi o documento mais controverso do CVII. Uma considerável minoria dos padres conciliares manifestou reservas, alegando que a Declaração parecia se afastar da doutrina católica estabelecida acerca da liberdade de religião. Entre a maioria que apoiou uma afirmação da liberdade religiosa, houve profundas discordâncias sobre a natureza e o fundamento do direito à liberdade de religião e a relação entre liberdade e verdade.



Embora aprovada por uma expressiva maioria dos padres conciliares e celebrada pelo Papa Paulo VI como "um dos grandes documentos" do CVII, a "Dignitatis Humanae" permaneceu como uma fonte de controvérsia e debates. Por trás do ato cismático do Arcebispo Marcel Lefebvre de consagrar bispos sem o mandato papal havia uma convicção de que a Declaração representou um afastamento da doutrina católica e uma capitulação à heresia modernista. Entre os defensores da liberdade religiosa, a discordância que acompanhou a elaboração da Declaração tem servido como uma fronteira para diferentes tipos de natureza e fundamento da liberdade religiosa, e o significado deste ensinamento para a relação entre a Igreja e a modernidade.

Uma razão pela qual a Declaração continua a gerar interesse e discussão é a importância central do tema da liberdade para o confronto da Igreja com a cultura contemporânea. "A era que chamamos de tempos modernos", observou Joseph Ratzinger, "tem determinado desde o início o tema da liberdade; o esforço por novas formas de liberdade". Ambos "Gaudium et Spes" e "Dignitatis Humanae" reconhecem a legitimidade desta aspiração por liberdade. Ao mesmo tempo, os padres conciliares reconheceram a necessidade de um discernimento crítico da idéia moderna de liberdade à luz da verdade da natureza humana e do mistério cristão da redenção.

Liberdade não é meramente a capacidade para escolher entre ambas alternativas; é um sinal da dignidade ontológica da pessoa humana que é criada no amor e chamada a viver em comunhão com a verdade. Uma das grandes conquistas da Declaração é desenvolver uma compreensão da dignidade humana e da liberdade humana que é fundada na relação constitutiva da pessoa humana com Deus. Nas palavras de S. João Paulo II, "a liberdade do indivíduo encontra seu fundamento na dignidade transcendente do homem: uma dignidade dada a ele por Deus, o Criador e Pai, que o criou à sua imagem e semelhança". Não há liberdade sem verdade e não há verdade sem liberdade.

Frente a novos desafios e novas ameaças à liberdade de religião, é importante redescobrir o ensinamento autêntico do CVII sobre o direito à liberdade religiosa como fundado no dever de buscar a verdade sobre Deus. Como ensina a "Gaudium et Spes", uma vez que Deus é esquecido, a criatura perde de vista o bem. Principalmente no nosso tempo, é necessário apoiar a dignidade transcendente e relacional da pessoa humana, que é criada por Deus e destinada a participar da "gloriosa liberdade dos filhos de Deus" (Rom 8,21)


CWR: Quais são os subsídios que seu livro fornece para ajudar os leitores a entender e interpretar a "Dignitatis Humanae"?

Dr. Healy: Primeiramente, nosso livro fornece uma nova tradução da Declaração, lado a lado com o texto latino. As notas de rodapé indicam traduções alternativas de palavras ou frases importantes, de versões anteriores.

Em segundo lugar, nós publicamos - pela primeira vez em inglês - os cinco esquemas ou esboços dos textos que foram debatidos e discutidos no CVII. Meu capítulo sobre "O esboço da Dignitatis Humanae" descreve o início e a história da redação do documento. Uma melhor consciência das mudanças que foram introduzidas ao texto final como resultado do debate conciliar é essencial para a compreensão do documento como em continuidade e desenvolvimento da doutrina católica.

Em terceiro, o livro fornece as intervenções sobre liberdade religiosa no CVII do bispo Karol Wojtyla. Falando em favor de todo o episcopado polonês, as intervenções de Wojtyla sobre a relação entre liberdade e verdade se provaram decisivas para a redação final do documento.

(CNS photo/Giancarlo Giuliani, Catholic Press Photo)

Por fim, o livro inclui um grande ensaio interpretativo de Schindler que explora a situação atual do tema e desenvolve um extenso argumento sobre o significado do direito à liberdade religiosa. Uma passagem do capítulo de Schindler resume o argumento:

"Não é o caso de, com a afirmação conciliar da liberdade religiosa, a Igreja ter sinalizado uma nova consciência da importância da liberdade além da, ou mesmo apesar de, sua tradicional ênfase na verdade. Pelo contrário, com este ensinamento conciliar, corretamente entendido, a Igreja, ao invés, sinaliza um desenvolvimento da sua compreensão da unidade inerente da verdade com a liberdade e da liberdade com a verdade. Enquanto ainda afirma que só a verdade liberta, ela agora assevera igualmente, de modo mais explícito, que a verdade em si pressupõe a liberdade  que a verdade realmente liberta".


CWR: Quais são alguns dos temas chave debatidos e discutidos pelos bispos do CVII em relação à liberdade religiosa? Dr. Healy, quais são as informações importantes que podem ser encontradas ao estudar, como o sr. fez, os esboços da "Dignitatis Humanae"?

Dr. Healy: A primeira e mais básica questão debatida no CVII foi como compreender a natureza e fundamento do direito à liberdade religiosa. Uma das mudanças mais significativas que ocorreram como resultado do debate conciliar foi fundamentar o direito à liberdade religiosa no dever de buscar a verdade, em especial a verdade sobre Deus. Esta mudança de concepção implica outra questão: a relação da pessoa com Deus e com a verdade informa o significado da dignidade humana e o conteúdo do direito de imunidade à coação? Em seu livro "John Paul II and the Legacy of Dignitatis Humanae", o padre jesuíta Hermínio Rico situa este tema da seguinte forma:

"A questão básica no nível do fundamento do direito à liberdade religiosa tem a ver com o tipo de resposta definitiva ao seguinte problema: onde em última análise reside a dignidade humana na pessoa? [Reside] na liberdade intrínseca a toda pessoa? Ou está na relação da pessoa com a verdade transcendente?"

Como sugerido por Rico, o assunto sublinhado envolve a relação entre a liberdade humana e a verdade. Uma escola de pensamento - representada por John Courtney Murray e Pietro Pavan— tende a enxergar o direito à liberdade religiosa como uma concepção formalmente jurídica distanciada do problema da verdade. "Liberdade religiosa", escreve Pavan, "não diz respeito... à relação da pessoa com a verdade". Mais recentemente, Martin Rhonheimer apoiou uma versão deste posicionamento.

Outro grupo - formado principalmente por bispos da França, Itália e Polônia - considerou a relação entre liberdade e verdade como fundamental para a dignidade humana e como informadora do direito à liberdade religiosa. Em intervenção crucial durante a qurta e última sessão do CVII, o bispo francês Ancel sustentou sucintamente que: "o dever de buscar a verdade é, em si mesmo, o fundamento ontológico da liberdade religiosa". Uma das descobertas chave que fizemos enquanto empreendíamos a pesquisa para este livro foi que os primeiros esboços da Declaração estavam consideravelmente enriquecidos e aprofundados em respostas às preocupações dos bispos Wojtyla, Columbo e Ancel - preocupações partilhadas por Paulo VI.

Uma segunda matéria relacionada que foi discutida no CVII envolve os "devidos limites" da liberdade religiosa. Esta questão por sua vez pressupõe um fundamento da natureza e do propósito da autoridade política. Considere, p. ex., duas propostas bastante diferentes em relação à responsabilidade do Estado:

"O poder civil possui também, e não apenas cada um dos cidadãos, o dever de aceitar a revelação proposta pela Igreja. Igualmente, em sua legislação, deve se ordenar aos preceitos da lei natural e garantir que a lei positiva, tanto divina quanto eclesiástica, pretenda levar o homem à beatitude sobrenatural... Compete seriamente ao poder civil o dever de excluir da legislação, governo e atividade pública tudo que julgue capaz de impedir a Igreja de atingir sua finalidade eterna".

"Os atos religiosos, nos quais homens e mulheres privada e publicamente se orientam para Deus, longe de ser uma convicção interna e pessoal, transcendem a ordem temporal e terrena das coisas. Ao realizar esses atos, portanto, o homem não está sujeito ao poder civil, cuja competência, no fim das contas, é restrita à ordem terrena e temporal, e cujo poder de legislar alcança somente as ações externas. O poder público, assim, uma vez que não pode julgar os atos religiosos internos, da mesma forma não pode coagir ou impedir o exercício público da religião, desde que garanta que as exigências da ordem pública sejam preservadas... O poder público excede completamente a sua competência se interferir de qualquer modo no governo das mentes e no cuidado das almas".

O primeiro texto, tomado do esquema preparatório "De Ecclesia", esboçado sob a direção do Cardeal Ottaviani, pressupõe a visão católica tradicional de que o propósito da autoridade política é cuidar do bem comum temporal. Conforme esta perspectiva, a responsabilidade pelo bem comum inclui um reconhecimento da verdade da religião católica e permite a supressão de manifestações públicas das religiões falsas. O segundo texto, tomado de um esboço preliminar da "Dignitatis Humanae"(o terceiro esboço do "textus emendatus"), sugere a completa incompetência do Estado em matéria religiosa. Em vez da tradicional idéia de responsabilidade pelo bem comum, o "textus emendatus" apresenta a findalidade da autoridade política em termos de "proteger, cultivar e defender os direitos naturais de todos os cidadãos".

O texto final da Declaração difere de ambos os esboços preliminares. "Dignitatis Humanae" descreve como propósito ou "fim próprio" da autoridade política "olhar pelo bem comum temporal"(DH, 3). Ao mesmo tempo, a Declaração desenvolve a idéia de bem comum à luz de uma nova consciência da dignidade e liberdade da pessoa humana. Em termos da controvérsia da responsabilidade estatal sobre a verdade e a prática da religião, a Declaração reconhece a natureza transcendente dos atos religiosos. Portanto, a autoridade política "excede os seus limites quando presume dirigir ou impedir os actos religiosos" (DH, 3). Igualmente, olhar pelo bem comum requer que a autoridade política deva " reconhecer e favorecer a vida religiosa dos cidadãos" (DH, 3). Não é possível para o Estado ser neutro ou simplesmente se subtrair das questões sobre a verdade da natureza humana e a verdade da religião.

Um terceiro ponto, que pressupõe e implica as questões precedentes, diz respeito ao desenvolvimento da doutrina. Pode a afirmação de um direito à liberdade religiosa ser interpretado como um autêntico desenvolvimento em vez de uma revogação ou contradição do magistério anterior dos papas Gregório XVI, Pio IX e Leão XIII? Muitos comentadores concordam que a "Dignitatis Humanae" representa uma mudança ou um novo desenvolvimento a respeito do magistério e prática dos papas do século XIX. A novidade da Declaração representa um autêntico desenvolvimento ou uma reuptura com a tradição precedente? A despeito das diferenças notórias, teólogos "tradicionalistas", como Marcel Lefebvre e Michael Davis, e "progressistass", como Charles Curran, Richard McCormick e John Nooonan, partilham uma premissa comum: a Declaração representa uma ruptura ou uma contradição com o magistério papal precedente. Os primeiros alegam que o ensinamento da Declaração é errôneo, enquanto que os últimos teólogos geralmente aduzem o exemplo da Declaração para sustentar outras possíveis mudanças na doutrina católica.

Em nossa visão, ambas as posições representam uma falsa hermenêutica para um texto conciliar e deixam passar o verdadeiro significado da Declaração.

CWR: Atualmente, quais são os mal entendidos ou deturpações mais comuns e influentes da Declaração? Quais são os exemplos de influência deles nos debates contemporâneos?

Dr. Schindler: As deturpações mais comuns da Declaração são ligadas a idéias relacionadas ao ser humano que estão geralmente em vigor na cultura contemporânea. O direito de liberdade religiosa, na visão predominante, é essencialmente "negativo", tem a ver principalmente com a imunidade de cada pessoa de ser coagida por outros. É obviamente verdade que um direito leva a tal imunidade "negativa". A questão central, no entanto, surge quando ponderamos seu fundamento. A Declaração radica o direito de imunidade na natureza humana e no seu dever moral de buscar a verdade, especialmente a verdade em matéria religiosa (§2º). "Todos", afirma, "têm o dever e consequentemente o direito de buscar a verdade em matéria religiosa..." (§3º). O direito à liberdade religiosa possui primeiramente um significado positivo: uma vez que eu sou, pela minha própria natureza, orientado para a verdade, e sou, assim, moralmente obrigado a procurar a verdade, logo esta minha busca não deve ser obstruída por outros. Meu direito (negativo) de imunidade à coação toma seu primeiro sentido do interior da minha relação (positiva) com a verdade.

Quando o fundamento e a natureza do direito à liberdade religiosa são concebidos deste modo, estamos dispostos a afirmá-lo como um direito de todo ser humano, sem exceção - desde que todo ser humano, no exercício de sua própria inteligência e liberdade, esteja vinculado à busca da verdade sobre Deus. E, ao mesmo tempo, apoiamos o direito negativo à imunidade -  porque esta imunidade permanece como condição necessária, ficando vinculada, ao dever de buscar a verdade.

A Declaração, em uma palavra, baseia o direito à liberdade religiosa na dignidade humana que consiste nas faculdades espirituais da razão e do livre arbítrio, uma vez que estão orientados e ligados à verdade em relação à natureza e ao destino do ser humano.

Podemos apresentar um segundo exemplo de como os católicos geralmente tendem a interpretar mal a Declaração. Em culturas liberais, a tendência é conceber a verdade mais como um limite e, assim, um fardo à liberdade. Geralmente, concebemos a liberdade em termos de mera liberdade de escolha - o que mais tarde o Pe. Servais Pinckaers chamou de "liberdade da indiferença". Nesta perspectiva, quanto mais opções eu possuo, mais livre eu sou; quanto mais eu permito que a liberdade seja delimitada pela verdade, menos livre eu sou. Não é preciso dizer que esta visão se presta a uma concepção limitada de ordem política. Segundo esta ótica, a tendência é ordenar politicamente a sociedade em termos de uma liberdade separada da verdade. Por quê? Porque ordenar a sociedade conforme a verdade, por definição - para aqueles que seguem este ponto de vista - ameaçaria a liberdade política daqueles que possuem concepções diferentes sobre o que é verdadeiro. Não é de surpreender, então, que católicos que vivem em sociedades liberais se inclinem para o que se chama de interpretação "jurídica" da liberdade de religião. A abordagem jurídica, segundo a qual a ordem constitucional autoriza a mentir em liberdade, ou que protege o direito de imunidade separado de questões sobre a verdade e o dever moral de buscar a verdade.Os católicos geralmente tomam como estabelecido que é apenas esta abordagem jurídica que foi consagrada pelo ensino autêntico do CVII. Porém, esta interpretação perde a carga expressiva de mudanças feitas no esquema 5 da Declaração, que são discutidas em nosso livro.

CWR: É correto dizer, Dr. Schindler, que em seu ensaio interpretativo o sr. sustenta que a Declaração não marca, como alguns insistem, uma ruptura com o magistério precedente da Igreja sobre verdade e liberdade, mas avança num desenvolvimento profundo e integrado da compreensão sobre eles? Quais são os aspectos essenciais da sua interpretação?

Dr. Schindler: Se alguém aceita que o ensinamento central da Declaração erra na sua afirmação de um direito individual negativo de imunidade, logo, obviamente, este ensinamento vai parecer representar uma ruptura com o passado: primeiro a Igreja enfatizou a necessidade da verdade na ordem político-social, agora ela capitulou à civilização moderna, com sua ênfase sobre liberdade "negativa". Porém, a pretensão de que a Declaração deslocou o permanente interesse da Igreja pela verdade, essencialmente, para um interesse pela liberdade, simplesmente não pode ser sustentada em uma leitura adequada do texto.

Há um sentido no qual podemos - ou melhor, devemos - dizer que a defesa da liberdade religiosa feita pela Declaração compreende um genuíno desenvolvimento do magistério da Igreja? Sim - no sentido de que a Igreja agora apresenta mais explicitamente como a realização da verdade mesma requer uma interiorização pelo sujeito humano-espiritual. A verdade não reside meramente em uma correspondência externa entre o intelecto e a realidade - o que abriria a porta mais facilmente para o uso de medidas coercivas para efetuar esta correspondência. Em vez disso, a verdade consiste na representação interior da realidade no intelecto, o que requer a participação ativa da inteligência e da vontade da pessoa. Meu ensaio desenvolve esta afirmação à luz do trabalho do filósofo Josef Pieper.

Para o CVII, a verdade que é coagida não corresponde àquilo que era entendido como verdade no sentido clássico-medieval. Nas palavras de São João Paulo II, a verdade é para ser proposta, não imposta  (Redemptoris Missio, 39, 46). Sejamos claros: a Declaração, assim, não nega a necessidade de leis boas, ou abandona a essencial finalidade pedagógica da ordem jurídica da sociedade, afirmada por Santo Tomás. A Declaração reafirma a perene preocupação da Igreja pelo bem comum. Enquanto emprega o termo concebido mais juridicamente, "ordem pública", para caracterizar o fim da autoridade política, a Declaração significativamente acrescenta qualificações substantivas - em nome do bem comum, da justiça, da ordem mora objetiva etc. (cf. DH, a. 7).

De acordo com a Declaração, a liberdade deve ser, de fato, protegida vigorosamente pela ordem política, mas apenas como ordenada ao bem comum objetivo - no centro do qual está a dignidade da pessoa humana em sua relação com a verdade, especialmente no que toca a Deus. Karol Wojtyla, p. ex., argumentou fortemente que não conceituar a "ordem pública" desta forma deixaria a sociedade logicamente vulnerável ao relativismo, e o texto final refletiu essas preocupações. Podemos dizer, então, que o CVII, em sua Declaração sobre a Liberdade Religiosa, forneceu um exemplo chave do conjunto de continuidade e descontinuidade que o Papa Bento XVI afirmou como sendo uma característica do ensinamento do CVII, quando adequadamente interpretado.

Meu capítulo também vê a questão do desenvolvimento doutrinal em relação com o conhecido argumento histórico em matéria de direitos de Brian Tierney. Esse autor defende a continuidade entre os antigos e os modernos no tema da teoria dos direitos. Mas ele o faz em termos de proridade dos direitos em seu sentido moderno - como imunidades. Tierney, então, afirma que a idéia de direitos como imunidades já estava implícita nos pensadores clássico-medievais e que a ênfase dada pelos modernos no sentido negativo dos direitos pode ser interpretado a respeito das responsabilidades sociais positivas do homem, como enfatizado pelos pré-modernos. Meu ensaio, no entanto, sustenta que a Dignitatis Humanae, na verdade, afirma algo próximo do contrário. A Declaração, de fato, pressupõe uma continuidade dentro da descontinuidade entre os medievais e os modernos em matéria de direitos humanos, mas a continuidade é estabelecido primeiro em termos de desenvolvimento no período medieval por pensadores como S. Tomás. A diferença reside na prioridade da verdade, em duplo sentido: é a verdade em si que exige o direito à liberdade religiosa; e o direito à liberdade religiosa está intrinsecamente afirmado, mas sempre constituído pela ordenação da liberdade à verdade.

O ensinamento do CVII, então, requer conformidade com a noção moderna de direitos apenas na medida em que exige a transformação de tais direitos: afirmando o sentido negativo dos direitos como delimitados pelo sentido positivo para o qual eles foram feitos.

CWR: Há, é claro, atualmente muita discussão nos EUA e no Ocidente sobre a liberdade religiosa e a autonomia. Como a Declaração e o seu estudo sobre o tema conciliam os conflitos entre a Igreja e o Estado, e entre a fé religiosa e a lei civil/secular?

Dr. Schindler: A Declaração formalmente não se ocupa da questão do relacionamento Igreja-Estado, mas o seu ensinamento claramente implica princípios que são cruciais para a compreensão desta relação. Quais são esses princípios?

A percepção predominante nas sociedades liberais hoje, com sua abordagem "jurídica" de direitos, é a de que a separação entre Igreja e Estado implica neutralidade em relação à verdade e práticas religiosas. A posição tomada pela Declaração denota rejeição a esta neutralidade.

A idéia de neutralidade é invariavelmente ligada à visão de que a liberdade é um ato de escolha "vazio" que pode ser legitimamente considerado separado de qualquer ordem à transcendência. Porém, tal visão não evita uma concepção definitiva de liberdade; pelo contrário, incorpora a concepção de liberdade chamada liberdade da indiferença - como já mencionado. A liberdade da indiferença, por definição, reduz todas as pretensões religiosas de verdade a opcionais, ou arbitrárias.

A idéia de neutralidade religiosa por parte do Estado então recai em dois erros básicos. Ele governa em nome de procedimentos justos voltados para proteger a liberdade concebida como liberdade da indiferença. Isso resulta no que é geralmente denominado de relativismo procedimental - mas é importante notar que o relativismo é uma característica de um tipo de (falsa) liberdade que dirige os procedimentos. Ao mesmo tempo, a abordagem "jurídica" favorece religiões ou igrejas que são, por natureza, voluntaristas: que consideram a relação com Deus primariamente como uma operação de escolha. Todas as religiões tradicionais do mundo, ao contrário, compreendem que as relações entre Deus e homem já tinham se iniciado no ato de criação. De acordo com essas religiões, o ser humano é religioso por natureza (homos religiosus), assim como a realização da verdade de uma natureza religiosa pressupõe, é claro, o exercício da liberdade. A abordagem "jurídica" da questão Igreja-Estado, nesse sentido, legalmente (mesmo se inconscientemente), favorece as "seitas", preterindo as religiões mundiais tradicionais - como o catolicismo romano.

Ele governa em nome de procedimentos justos concebidos para proteger a liberdade concebida como liberdade de indiferença. Isto resulta em que é frequentemente denominado processual-relativismo mas é importante notar que o relativismo é uma função do tipo específico de (falso) liberdade guiando os procedimentos. Ao mesmo tempo, a abordagem "jurídico" favorece religiões ou igrejas que estão na natureza voluntarista: que tenham relação com Deus para ser principalmente uma função de escolha. Todas as religiões do mundo tradicional, pelo contrário, entender a relação do homem com Deus para ser iniciado já no homem no ato de criação. De acordo com essas religiões, o ser humano é por natureza religioso (homo religiosus), assim como a realização da verdade de uma natureza religiosa do curso pressupõe o exercício da liberdade. A abordagem "jurídica" às perguntas Igreja-Estado, desta forma legalmente (mesmo que apenas inconscientemente) favorece "seitas" em detrimento de religiões tradicionais do mundo-como o catolicismo romano.

Em relação à fé religiosa e a lei civil, então: o conceito de "competência" foi usado no Esquema 2, e ainda é falado em discussões relacionadas à Declaração que o Estado é incompetente em matéria de religião. Mas a discussão final omitiu o conceito de incompetência, e, na verdade, este termo pode ser problemático. Cada Estado vai necessariamente adotar alguma idéia de relação do homem com a verdade religiosa. O Estado vai "ter competência" para agir - mesmo que não num sentido explícito: ele vai tratar a atividade religiosa ou como originalmente opcional para o homem, ou como originalmente natural para ele (e então como algo que é necessário para ele se ele viver com integridade, também na vida política).

O ensino da Declaração relacionando religião e competência do poder civil (potestas civilis), então, carrega duas pretensões: por um lado, o poder civil não pode ser o primeiro ou último árbitro da religião e da verdade e prática religiosa, e nesse sentido o Estado deve permanecer "incompetente" em matéria religiosa.
Ao mesmo tempo, essa negação de competência em si mesma já indica um tipo de competência, na medida em que implica uma concepção positiva da religião na sua natureza transcendente: é por isso que o Estado não pode nunca presumir ser um árbitro adequado da religião (DH, 3)! De fato, a Declaração vai em frente na competência em matéria religiosa: diz que o Estado deve "reconhecer e favorecer a vida religiosa dos cidadãos" (DH, 3), e "assegurar eficazmente... proporcionar condições favoráveis ao desenvolvimento da vida religiosa" (DH, 6). A proibição negativa implicada pela "incompetência", portanto, de acordo com a Declaração, pressuporia sempre, ao menos tacitamente, um reconhecimento (positivo) da natureza transcendente da religião por parte do Estado, e qualquer defesa da "incompetência" do Estado só pode ser corretamente entendida em termos deste reconhecimento (positivo).

Esta leitura da Declaração carrega implicações surpreendentes em face da percepção comum de que a Declaração exige uma postura de neutralidade religiosa do Estado. Na verdade, em uma leitura adequada do documento, não há nenhum problema, em princípio, para o Estado promover condições que favoreçam pretensões de verdade relativas à religião - uma neutralidade em tais assuntos é, em qualquer caso, logicamente impossível! De fato, não há nenhum problema, em princípio, para os católicos promover condições que favoreçam a compreensão católica da natureza e do destino do homem. Pelo contrário, a Declaração corretamente interpretada confia aos católicos a tarefa de realizar precisamente esta missão da verdade sobre o fim último do homem. ("todos os homens têm o dever de buscar a verdade, sobretudo no que diz respeito a Deus e à sua Igreja e, uma vez conhecida, de a abraçar e guardar.": DH, 1). O ponto crucial é simplesmente que este serviço missionário, provocado pela verdade da "Igreja Católica e Apostólica" (DH, 1), seja realizado de uma forma que é vigilante na proteção do direito à imunidade de coação de todos os cidadãos. Na verdade, é expressado pela Igreja que a verdade de Jesus Cristo liberta a liberdade humana no sentido mais amplo, como um efeito central de sua própria verdade (cf. DH, Ch. 2).


CWR: Neste mesmo contexto, que erros os católicos devem evitar ao abordar questões sobre liberdade religiosa? E de que maneiras os católicos podem promover uma compreensão forte e ortodoxa do assunto?

Dr. Schindler: Embora a maneira mais simples para responder essas questões seja recordar o resumo do juízo de John Courtney Murray relativo à Declaração. (Como é bem sabido, Murray foi o "primeiro redator" do Esquema 3 da Declaração). Murray tinha dois interesses principais em relação ao documento na sua forma final. Primeiro, ele temia que fundamentar o direito à liberdade religiosa no dever de buscar a verdade pudesse dar justificativa para que os Estados impusessem a verdade, de forma a acelerar a chegada dos cidadãos à verdade que eles deveriam buscar. Em segundo, ele pensava que a insistência dos padres conciliares em ligar explicitamente a liberdade com a verdade refletia uma falha em distinguir adequadamente a abordagem do liberalismo formal-jurídico anglo-americano sobre os direitos da abordagem repressiva-secularista franco-continental. Por fim, não obstante essas duas reservas, Murray acreditava que a marca assinalada da Declaração final permaneceu a sua concepção "negativa" do direito à liberdade religiosa como uma imunidade.

Em resposta, nosso livro defende, relativamente ao primeiro: que os padres conciliares tiveram o cuidado de insistir que, em uma compreensão católica, é a própria verdade que exige liberdade, assim como a liberdade mantém a sua ligação essencial com a verdade, mesmo nas esferas da ordem civil e política. Em relação à segunda: os padres conciliares perceberam que a noção puramente jurídica do dever-ser da liberdade logicamente implica uma liberdade da indiferença que leva ao relativismo, a despeito de suas intenções "processuais" aparentemente inocentes. Em relação ao terceiro: o esforço do nosso livro é mostrar que, se a verdade e a liberdade são indissolúveis, também, mesmo na ordem política, segue-se que um direito negativo para a liberdade pode ser devidamente assegurado, sempre e em toda parte, apenas a partir do interior da ordenação positiva da pessoa humana em direção à e pela verdade.

Se os católicos querem evitar erros na abordagem de questões sobre a liberdade religiosa e promover uma interpretação fiel ao ensinamento da Igreja a respeito, parece-nos que terão de alcançar a clareza, especialmente no que diz respeito a essas questões levantadas por Murray em seu juízo final sobre a Declaração.


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