Por Edouard Clerc
Por mais que não pensemos nela, cedo ou tarde todos teremos de enfrentar-nos com a morte. Por isso, importa estar sempre preparado para esse momento, sem, contudo, viver numa paranóia contínua. O ponto é que a morte, para o cristão, é um encontro.
Por mais que não pensemos nela, cedo ou tarde todos teremos de enfrentar-nos com a morte. Por isso, importa estar sempre preparado para esse momento, sem, contudo, viver numa paranóia contínua. O ponto é que a morte, para o cristão, é um encontro.
PENSAR NA MORTE
É necessário pensar na morte, evitando, por outro lado, que se torne uma idéia fixa, pois pensar nela o tempo todo é doentio ou, pelo menos, negativo. Positivo é desejar a Vida Eterna como um fim que presida a toda a vida terrena. A morte será, assim, o meio de alcançarmos a verdadeira vida, para a qual fomos criados.
Qualquer pessoa que creia firmemente na vida eterna deixa de ver a morte unicamente como uma dolorosa separação entre a alma e o corpo, porque, “por trás das misteriosas portas da morte, perfila-se uma eternidade de alegria em comunhão com Deus” (João Paulo II). Deste ponto de vista, que aliás é o único verdadeiro, a vida não é tirada pela morte, mas transformada, e, desfeita a nossa habitação terrena, é-nos dada uma mansão eterna nos céus (Prefácio dos defuntos I).
A primeira conseqüência, para quem crê e espera nesta alegria sem fim, é o desprendimento de tudo aquilo que não serve para adquiri-la. Tantos homens e mulheres afadigam-se, lutam e sofrem para obter aquelas coisas que, segundo pensam, lhes trarão a felicidade, mas, quando morrem, nada resta de tudo isso. Pura e simplesmente, correram atrás de uma miragem. Nem o dinheiro, nem a vanglória, nem o poder, nem os prazeres carnais, nenhuma dessas coisas que governam o mundo é capaz de proporcionar uma felicidade duradoura. Portanto, é preciso fazer um esforço enérgico para superar tudo isso, que, em si, para nada serve; pois, quer pensemos na morte, quer não, os anos passam e a hora do nosso fim aproxima-se.
É preciso simplificar a vida. Quando se carrega um excesso de bagagem, estraga-se a viagem: é penoso e cansativo carregar malas enormes, e a pessoa acaba por perguntar-se a si própria: “Mas por que fui trazer tantas coisas?” Ainda é tempo de nos desembaraçarmos de tudo o que é inútil, pois não é necessário ter dinheiro nem condecorações para entrar no céu. O coração puro é um coração desprendido: Bem-aventurados os pobres em espírito, porque deles é o reino dos céus (Mt 5, 3).
POSSÍVEIS ATITUDES DIANTE DA MORTE
O nosso grau de amor a Deus pode medir-se pela atitude que tivermos diante da morte: podemos temê-la, resignar-nos diante dela ou aceitá-la ativamente.
Temer a morte é um sentimento natural no homem, porque morrer supõe geralmente um duro combate, uma luta da nossa natureza contra o ato que a destrói: é a agonia, que pode ser longa e é sempre penosa. Instintivamente, temos medo dela. Na ordem natural, pois, é impossível contemplarmos com indiferença essa catástrofe que consiste na separação dos dois elementos que compõem o nosso ser.
Se a morte destrói a ordem querida por Deus, ao decompor a criatura, por que morremos? Porque a morte é conseqüência do pecado. Deus disse a Adão: Se desobedeceres e comeres desse fruto, morrerás (cf. Gen 2, 17). Adão desobedeceu e morreu, deixando-nos a morte em herança.
Podemos perguntar também: “Então, se Adão tivesse obedecido, não morreríamos?” Com efeito, como a morte era o castigo da desobediência, o homem poderia ter-lhe escapado se tivesse observado o mandamento divino. Nesse caso, a sua imortalidade seria uma graça especial, pois o corpo humano é mortal, como todos os seres vivos materiais; o homem passaria desta vida para a vida eterna sem sofrer a dor e a angústia da morte. De qualquer modo, nas nossas condições atuais, a morte é um mal e, por isso, não é de estranhar que lhe tenhamos medo.
A morte pode ser resignada quando, pela força do seu caráter ou pelo raciocínio, a pessoa chega a aceitá-la sem revolta, como algo que não tem remédio, apesar de toda a repugnância que sente diante dela. Quando se está gravemente doente, e se sabe que o desenlace é inevitável, acaba-se por aceitar sem revolta o fim. Mesmo numa perspectiva meramente humana, sem referência a Deus, é-nos necessário alcançar pelo menos essa resignação humana para podermos superar o terror que a morte inspira.
Quando se avança em idade, torna-se cada vez mais necessário resignar-se com a impossibilidade de fazer aquelas coisas que se costumavam fazer. Temos de deixar nas mãos dos mais jovens as tarefas que nós próprios desempenhávamos, mesmo que eles as levem a cabo de modo diverso do nosso. Temos de resignar-nos com a decadência física, com o entorpecimento progressivo que vai tomando conta dos nossos olhos, dos ouvidos, das pernas. Temos de resignar-nos diante da doença e do sofrimento, sinais da nossa fragilidade. Temos de resignar-nos a ver o tempo passar cada vez mais depressa, e compreender que o fim se aproxima.
Poderia dizer-se que esses diversos tipos de resignação constituem uma preparação remota para a morte, uma vez que nos desprendem de muitas coisas terrenas. Mas a resignação não basta, porque essa atitude só diz respeito aos velhos e aos doentes crônicos, quando há também numerosos casos de morte súbita ou por acidente. É necessária, portanto, uma outra disposição perante a morte: a aceitação.
A livre aceitação da morte não é um simples sentimento, que pode ou não estar presente, mas implica a compreensão do plano de Deus, e por isso é importante para todas as pessoas. Temos de chegar a considerar a morte como o meio previsto por Deus para entrarmos na vida eterna, “o parto para a vida, que se realiza na dor”.
Semelhante aceitação não deve estar mesclada de amargura, mas unir-se à atitude de Jesus que, na sua agonia no Horto das Oliveiras, dizia ao Pai: Não se faça a minha vontade, e sim a tua (Lc 22, 42). Os nossos sofrimentos e a nossa morte são elevados e transformados pela nossa união com Cristo, e assim a nossa aceitação tem de ser igual à do Senhor: Pai, em tuas mãos entrego o meu espírito (Lc 23, 46).
Com o dom da nossa vida, devemos, pois, fazer também o dom da nossa morte, persuadidos de que, tanto na vida como na morte, pertencemos ao Senhor: Quer vivamos, quer morramos, somos do Senhor. Pois foi com este fim que Cristo morreu e ressuscitou: para ser Senhor dos mortos e dos vivos (Rom 14, 8-9).
Acostumemo-nos a oferecer a nossa morte a Deus a partir deste mesmo instante – pois é coisa que não se improvisa –, a fim de que no último momento da nossa vida o ato de caridade nos venha aos lábios com toda a espontaneidade. O derradeiro oferecimento da nossa morte a Deus estará assim ligado a uma vida de permanente abandono e confiança na Misericórdia infinita. E teremos verdadeiramente uma morte aceita, uma morte no Senhor.
A MORTE ESPIRITUAL
Mas em que consiste morrer no Senhor? Antes de mais nada, em conduzir-nos de acordo com a verdade que Deus nos deu a conhecer: Em verdade, em verdade vos digo que quem ouve a minha palavra e crê naquele que me enviou, tem a vida eterna e não incorre na sentença de condenação, mas passou da morte para a vida (Jo 5, 24). Escutar e cumprir a palavra de Deus, fazer aquilo que Ele nos pede, implica evitar tudo o que é contrário à sua Vontade, isto é, o pecado. Por ser livre, o homem pode escolher, e de acordo com o que pensar e fizer, estará preservando a vida da graça ou pondo-a a perder. E quando se perde essa vida, é a morte espiritual: a pessoa passa a estar em estado de pecado mortal. Quem morre em pecado não morre no Senhor, pois, ao pecar, expulsou-o da sua alma.
Esta vida é, portanto, combate espiritual permanente contra a morte da alma pelo pecado; e é na arena da vida terrestre que se desenvolve este drama, cujas conseqüências – a vida ou a morte – são eternas. Certamente, não será necessário esclarecer que não são os pecados leves, mas os pecados graves, que provocam a morte espiritual; e para distinguir entre uns e outros, dispomos da doutrina cristã, ilustrada pelo Magistério da Igreja, e de um juiz interior, a consciência, cuja voz não devemos afogar, mas escutar.
Assim como já não se quer falar do Inferno, também não se fala mais do pecado, que é a sua causa, e conseqüentemente tampouco se fala da morte espiritual. No entanto, este é o grande dilema da nossa vida cotidiana: ou se está em graça ou se está em pecado; ou se está vivo ou se está morto. Aqui não há meios-termos possíveis. É assustador que se possa viver sem pensar nisso, esquecendo ou deixando de compreender que a nossa permanência nesta terra é uma prova, um combate que terminará por uma vitória ou uma derrota .
() O valor moral de toda uma vida não depende, portanto, de um balanço entre os méritos e os deméritos, de um confronto entre os atos bons e os atos maus, mas está ligado ao estado em que a alma se encontra no momento da morte. Se isto pode parecer paradoxal, recordemos que a justiça humana também é administrada analogamente: o juízo é pronunciado sobre um ponto, não sobre uma soma. Não esqueçamos, porém, que Deus não espera o momento da queda para apanhar o homem em falta e condená-lo: Terei eu prazer com a morte do malvado? Não desejo, antes, que mude de proceder e viva? (Ez 18, 23). Até o pecador mais calejado pode receber a graça de converter-se antes de morrer. Inversamente, pode acontecer a desgraça de que uma pessoa reta caia no final em alguma infidelidade grave, mas isso acontece mais raramente quando se procura manter ao longo da vida um coração humilde e se recorre com constância à oração e ao auxílio de Deus (N. do T.).
OS SACRAMENTOS E A ORAÇÃO
Por mais corajoso que seja o nosso empenho nesta batalha que dura a vida inteira, a nossa vontade por si só não basta para triunfar nela; felizmente, porém, contamos com Deus que, na sua misericórdia, nos presta a ajuda eficaz da sua graça. Com ela, não sucumbimos à tentação; e, se caímos, o Senhor encontra-se sempre disposto a perdoar, por meio do Sacramento da Reconciliação, até mesmo as faltas mais graves, se nos arrependemos delas.
Morrer em estado de graça, em paz com Deus, é morrer no Senhor. Quem se esforça por guardar a pureza da sua alma, está sempre pronto para esse encontro que é a morte. Uma reflexão deste gênero, sobre a morte espiritual, bem pode ser a ocasião de que precisemos para nos convertermos, para regressarmos a Deus, se por acaso nos afastamos dEle. Seja como for, todos nós encontraremos nela um acicate para nos enfrentarmos lealmente conosco próprios e para formularmos sérios propósitos de melhora.
A ajuda da graça chega-nos em primeiro lugar pelos Sacramentos, que nos dão ou restituem a graça, como o Batismo e a Confissão, ou a fazem crescer, como a Eucaristia. Não nos esqueçamos de que o principal alimento da vida sobrenatural em nós, o alimento por excelência, é a Comunhão. Quem come a minha carne e bebe o meu sangue, tem a vida eterna, diz o Senhor (Jo 6, 5). Ninguém se esquece do alimento corporal, pura e simplesmente porque tem necessidade dele; da mesma forma, deveríamos ter o desejo de comungar com freqüência, se possível diariamente, para manter o nosso organismo espiritual “em forma”.
Além dos Sacramentos, a graça chega-nos também pela oração e pelo mérito das boas obras. Se perdemos o costume de orar, expomo-nos a cair como um inválido que tivesse esquecido as suas muletas. A oração consiste em elevarmos o coração a Deus, falando com Ele e confiando-lhe tudo o que trazemos no coração; ela é, portanto, um sinal claro de que procuramos estar na graça de Deus.
A oração mais perfeita é a Santa Missa, da qual todos os cristãos têm necessidade; prescindir dela é correr um grande risco. E devemos também perseverar no costume de rezar à Santíssima Virgem, pedindo-lhe que rogue “por nós, agora e na hora da nossa morte”; podemos ter a certeza de que Ela estará presente nesse encontro e nos dará a mão para passarmos por essa porta.
“Assistimos todos os dias à morte de muitos, celebramos os seus enterros e funerais, e no entanto continuamos a prometer-nos longos anos de vida”. (Santo Agostinho, Sermão 17)
“[As pessoas] temem muito a morte porque amam muito a vida deste mundo e pouco a do outro. Mas a alma que ama a Deus vive mais na outra vida do que nesta, porque a alma vive mais onde ama do que onde anima”. (São João da Cruz, Cântico espiritual, 11, 10)
“Não tenhas medo da morte. – Aceita-a desde agora, generosamente..., quando Deus quiser..., como Deus quiser..., onde Deus quiser. Não duvides; virá no tempo, no lugar e do modo que mais convier..., enviada por teu Pai-Deus. – Bem-vinda seja a nossa irmã, a morte!” (Josemaría Escrivá, Caminho, n. 739)
“Não tem grande importância escapar à morte, pois é por pouco tempo, e depois é preciso morrer; mas é coisa grande escapar definitivamente à morte, como acontece conosco, por quem Cristo, nossa Páscoa, foi imolado”. (Orígenes, Hom. para o tempo pascal)
“Que grande dignidade e segurança sair contente deste mundo, sair glorioso em meio à aflição e à angústia, fechar por um momento estes olhos com que vemos os homens e o mundo, para em seguida voltar a abri-los e contemplar a Deus! (São Cipriano, Trat. a Fortunato, 13)”
“[...] Quando vier a morte, que virá inexoravelmente, espera-la-emos com júbilo, como tenho visto que o souberam fazer tantas pessoas santas no meio da sua existência diária. Com alegria, porque, se imitarmos Cristo em fazer o bem – em obedecer e levar a Cruz, apesar das nossas misérias –, ressuscitaremos como Cristo: Surrexit Dominus vere! (Lc 24, 34), que ressuscitou realmente”. (Josemaría Escrivá, É Cristo que passa, n. 21)
“Doutor em Direito e em Filosofia, preparava um concurso para professor catedrático na Universidade de Madrid. Duas carreiras brilhantes, feitas com brilhantismo. Mandou-me avisar: estava doente, e desejava que eu fosse visitá-lo. Cheguei à pensão onde estava hospedado. – «Padre, estou morrendo», foi a saudação. Animei-o, com carinho. Quis fazer uma confissão geral. Naquela noite, faleceu. Um arquiteto e um médico me ajudaram a amortalhá-lo. – E, à vista daquele corpo jovem, que rapidamente começou a decompor-se..., estivemos de acordo os três em que as duas carreiras universitárias não valiam nada, comparadas com a carreira definitiva que, como bom cristão, acabava de coroar”. (Josemaría Escrivá, Sulco, n. 877)
“Somente a virtude acompanha os defuntos; unicamente a caridade os segue”. (Santo Ambrósio, em Catena Aurea, vol. VI, p. 86)
“Não temas a morte. É tua amiga!
“– Procura acostumar-te a essa realidade, assomando com freqüência à tua sepultura. E ali, olha, cheira e apalpa o teu cadáver apodrecido, defunto há oito dias.
“– Lembra-te disto, especialmente, quando te perturbar o ímpeto da tua carne”. (Josemaría Escrivá, Forja, n. 1035)
“Não faças da morte uma tragédia!, porque não o é. Só aos filhos desamorados é que não entusiasma o encontro com seus pais”. (Josemaría Escrivá, Sulco, n. 885)
“Morrer?... Que comodismo!, repito.
“– Diz como aquele santo bispo, ancião e doente: “Non recuso laborem”: Senhor, enquanto puder ser-te útil, não me recuso a viver e a trabalhar por Ti”. (Josemaría Escrivá, Forja, n. 1040)
Fonte: “Que há para além da morte”, Quadrante, São Paulo, 1993.
Tradução: Gabriel Perissé
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