terça-feira, 12 de janeiro de 2016

Catequese - O Paraíso de Adão e Eva



Por Padre Lucas Prados.

No artigo anterior, estudávamos que o homem foi criado diretamente por Deus. Assim, analisávamos os dois capítulos do livro do Gênesis, onde aparecem os relatos da criação. Daí, concluímos que:
- Deus os criou como homem e mulher, com a mesma dignidade.
- Formados de um corpo material e uma alma espiritual.
- Criados à imagem e semelhança de Deus.
- Receberam de Deusa ordem de crescer e se multiplicar, e, para isso, foi instituído o matrimônio de um homem e uma mulher para toda a vida.
- Foi dada a condição de respeitar a ordem estabelecida por Deus, para seguir gozando dos dons e da amizade com a qual Deus os havia revestido de modo especial.

No homem podemos distinguir quatro estados reais

a) Estado de justiça original: que é o estado primitivo de nossos primeiros pais, antes de cometer o pecado original. O homem gozava da graça santificante, os dons preternaturais e os dons naturais (que estavam mais desenvolvidos porque não haviam sofrido o efeito do pecado).

b) Estado de natureza decaída: que é o que se seguiu imediatamente após o pecado original. O homem perdeu a graça santificante e os dons preternaturais. Os dons naturais (inteligência e vontade, principalmente), ainda que não tenham desaparecido, se viram afetados como consequência do pecado [1].

c) Estado de natureza redimida: que é o que se segue após a redenção de Cristo. O homem recupera a graça (dons sobrenaturais), mas não os dons preternaturais.

d) Estado de natureza glorificada: que é o estado no qual se já encontram as almas dos bem-aventurados no Céu. O homem possuirá a graça santificante, e, ademais, ao final dos tempos, haverá a ressurreição dos corpos, o que implicará a sua transformação (1 Cor 15: 42-44). No caso de Jesus Cristo e Maria, já estão, alma e corpo, gozando nos Céus sem ter que esperar a ressurreição final dos corpos.



Por outro lado, não podemos falar de um estado de natureza pura, no qual em algum momento houvera existido o homem, apenas e exclusivamente com as faculdades próprias da natureza humana, sem dons sobrenaturais, preternaturais e sem pecado (DS 1955). Ao menos, assim opinam os Santos Padres, Santo Tomás de Aquino e a grande maioria dos teólogos, ainda que, sobre esta questão concreta, Trento tenha deixado a questão aberta. De fato, Hugo de São Victor, Pedro Lombardo, Santo Alberto Magno e São Boaventura tenham sustentado que nossos primeiros pais só tiveram os dons preternaturais no momento da criação, e, para receber a graça, tiveram que fazer, uma vez criados, um ato pessoal de aceitação de Deus.

Neste capítulo, analisaremos como eram nossos primeiros pais, Adão e Eva, que foram criados até que desobedeceram a Deus e cometeram o pecado original.

Adão e Eva antes do pecado.

Adão e Eva foram criados por Deus com um cuidado e amor especiais. Deus, não somente lhes concedeu os dons que lhes eram próprios por sua natureza, senão que os elevou à ordem sobrenatural por pura graça, e lhes dotou de dons preternaturais, que embora pertencentes à ordem natural, não eram devidos nem necessários para o homem. Esses dons preternaturais foram uma ajuda extra que tiveram nossos primeiros pais. Tanto os dons preternaturais como os sobrenaturais foram dados por Deus ao homem por puro amor e em nenhum momento se pode dizer que eram uma exigência da natureza humana recebê-los [2].

O homem poderia não ter sido elevado por Deus à ordem sobrenatural, caso em que teria amado a seu Criador com um amor meramente natural, de simples criatura, mas, na verdade, Deus elevou nossos primeiros pais à ordem sobrenatural (1 Cor 13:12; 1 Jn 3:2, DS 3005).

O ser humano não apenas tem a capacidade de ser elevado à ordem sobrenatural, o que em teologia se chama “potentia oboedientialis”, se não que de fato foi elevado a tal ordem. Esta elevação se realizou constituindo em Adão um "estado de santidade e justiça originais" (Concílio de Trento, DS 1511).

Pela irradiação desta graça, todas as dimensões da vida do homem estavam fortalecidas. Enquanto pemanecesse na intimidade divina -em estado de graça santificante -, o homem não devia morrer (Gen 2:17; 3:19), nem sofrer (Gen 3:16), gozava de harmonia em si mesmo, entre ele e Eva, e entre este primeiro casal e toda a criação.

A este estado especial e gratuito se chama "santidade e justiça original" O homem gozava de integridade, e todo o seu ser estava livre da concupiscência, que lhe submete aos prazeres dos sentidos, à apetência desordenada dos bens terrenos e à afirmação de si próprio contra os imperativos da razão (1 Jn 2:16) [3].

1.- Os dons preternaturais

São aqueles dons que aperfeiçoam a natureza do homem sem elevá-la à ordem divina. Os dons preternaturais superam as exigências e as forças da natureza humana. Não são dons propriamente sobrenaturais, já que, embora superem as forças da natureza humana, não introduzem o homem na intimidade divina. Por outro lado, estes dons são gratuitos, isto é, não são devidos à natureza humana. Sua função era dar plena integridade e vigor à natureza, de modo que assim torne-se mais disposta para receber os dons estritamente sobrenaturais.

Como nos disse Santo Tomás de Aquino, graças aos dons preternaturais, havia uma perfeita sujeição do corpo à alma e daí à imortalidade que gozavam Adão e Eva. Também havia perfeita sujeição das potências inferiores do homem à razão. É o que se chama integridade e impassibilidade [4]. Analisemos agora brevemente cada um desses dons preternaturais.

1.1. Dom de integridade: Por esse dom, o homem tinha todas as potências inferiores da alma sujeitas à razão, a qual, por sua vez, estava submetida a Deus. O contrário deste dom é a concupiscência.

Chamamos concupiscência ao desejo de satisfação dos apetites físicos ou espirituais que buscam o que lhes cause prazer ou satisfação, sem ter em conta qualquer consideração da razão ou da vontade.

O dom de integridade em nossos primeiros pais se manifestou, p. ex., no fato de que Adão e Eva se deram conta de que estavam nus ao cometer o pecado original (Gen 2:25; 3: 7.10ss.; Rom 6:12 ss.). A carência deste dom vemos, pelo contrário, nesta frase de São Paulo: "Não faço o bem que quero, mas o mal que não quero" (Rom 7:19).

Santo Agostinho nos disse: "Adão não necessitava da que imploram os santos quando dizem: vejo outra lei em meu corpo... Adão, ao contrário, sem se ver tentado nem perturbado por essa luta interior entre suas tendências opostas... gozava de plena paz consigo mesmo" [5].

O Concílio de Trento afirma que a concupiscência não é pecado, mas que procede do pecado e a inclina a ele. Indiretamente, afirma que não existia antes do pecado (DS 1515). Afirmações similares encontramos no Segundo Concílio de Orange (DS 371) e em Pio XI, na sua encíclica Divini Illius Magistri (Dz 2212).

1.2. Dom da imortalidade: É doutrina de fé que o primeiro homem recebeu este dom. O homem era mortal por natureza, mas recebeu este dom gratuitamente, embora condicionado pela guarda da graça santificante. O vemos claramente afirmado em:

Gen 2: 17: “…mas da árvore do conhecimento do bem e do mal não poderás comer, porque, no dia em que comeres, morrerás".

Rom 5:12: “Portanto, assim como por meio de um só homem entrou o pecado no mundo, e, por meio do pecado, a morte, e, dessa forma, a morte chegou a todos os homens, pois todos pecaram...".

O Concílio de Trento definiu esta verdade de fé (DS 1511).

Santo Tomás nos disse que a imortalidade do corpo era o resultado de um dom especial dado à alma humana de tal modo que podia preservar o corpo da corrupção [6].  Cometido o primeiro pecado, este dom foi perdido.

1.3. Dom da Impasibilidade ou carência de sofrimento: Desde o ponto de vista teológico se considera uma verdade "teologicamente certa" [7]. É um complemento da imortalidade e da integridade. Este dom ajudaria a nossos primeiros pais a conseguir a união com Deus em perfeita harmonia e tranquilidade [8].

A Bíblia faz referência em:

Gen 3: 16-19: “Disse também à mulher: Multiplicarei os sofrimentos de teu parto; darás à luz com dores, teus desejos te impelirão para o teu marido e tu estarás sob o seu domínio”. E disse em seguida ao homem: “Porque ouviste a voz de tua mulher e comeste do fruto da árvore que eu te havia proibido comer, maldita seja a terra por tua causa. Tirarás dela com trabalhos penosos o teu sustento todos os dias de tua vida. Ela te produzirá espinhos e abrolhos, e tu comerás a erva da terra. Comerás o teu pão com o suor do teu rosto, até que voltes à terra de que foste tirado; porque és pó, e pó te hás de tornar.."

E também em Gênesis 2: 10.15.

Os Santos Padres unanimemente sustentaram a felicidade de Adão e Eva no Paraíso, vivendo sem dor nem sofrimento [9].

O Concílio de Trento reconhecerá essa doutrina em DS 1512.

1.4. Dom da ciência infusa: É doutrina comum que os primeiros pais possuíam o dom preternatural da ciência infusa, isto é, possuíam um conhecimento perfeito das coisas naturais infundidos por Deus e não adquirido por seu próprio esforço.

Assim se deduz dos seguintes textos da Sagrada Escritura:

Eclo 17: 1-9: "Deus criou o homem da terra, formou-o segundo a sua própria imagem; e o fez de novo voltar à terra. Revestiu-o de força segundo a sua natureza; determinou-lhe uma época e um número de dias. Deu-lhe domínio sobre tudo o que está na terra. Fê-lo temido por todos os seres vivos, fê-lo senhor dos animais e dos pássaros. De sua própria substância, deu-lhe uma companheira semelhante a ele, com inteligência, língua, olhos, ouvidos, e juízo para pensar; cumulou-os de saber e inteligência. Criou neles a ciência do espírito, encheu-lhes o coração de sabedoria, e mostrou-lhes o bem e o mal. Pôs o seu olhar nos seus corações para mostrar-lhes a majestade de suas obras, a fim de que celebrassem a santidade do seu nome, e o glorificassem por suas maravilhas, apregoando a magnificência de suas obras. Deu-lhes, além disso, a instrução, deu-lhes a posse da lei da vida".

Veja também Gênesis 2: 20.23.

Os Santos Padres sempre interpretaram desse modo. Eles dizem que o primeiro homem foi criado em estado adulto para que pudesse procriar, e foi criado com ciência para que pudesse governar o resto da criação.

1.5. Dom de domínio sobre a criação: Tal como aparece em Gen 1: 26.28, é doutrina comum que Adão tinha o dom do domínio sobre os seres inferiores da criação. Segundo nos ensina Santo Tomás, havia uma perfeita ordem na criação, de modo que os seres inferiores estavam submetidos ao homem. Inclusive os animais selvagens também estavam, com uma classe de poder do homem sobre eles análoga à da providência divina [10].

2.- A graça santificante

Definimos graça santificante como um dom sobrenatural que Deus nos concede para alcançar a vida eterna. Como consequência de a graça habitar no cristão, a alma se santifica e é capaz de estabelecer amizade e diálogo com Deus, ao memos tempo, o faz filho de Deus e herdeiro do Céu.

Nossos primeiros pais gozavam do estado de graça, segundo concluímos da Sagrada Escritura:

O livro do Gênersis relata em vivas cores o trato íntimo que existia entre Deus e nossos primeiros pais:
"E eis que ouviram o barulho (dos passos) do Senhor Deus que passeava no jardim, à hora da brisa da tarde. …” (Gen 3:8).

Na Carta aos Romanos, afirma São Paulo: “Por isso, como por um só homem entrou o pecado no mundo, e pelo pecado a morte, assim a morte passou a todo o gênero humano, porque todos pecaram... De fato, até a lei o mal estava no mundo. Mas o mal não é imputado quando não há lei. No entanto, desde Adão até Moisés reinou a morte, mesmo sobre aqueles que não pecaram à imitação da transgressão de Adão (o qual é figura do que havia de vir). Mas, com o dom gratuito, não se dá o mesmo que com a falta. Pois se a falta de um só causou a morte de todos os outros, com muito mais razão o dom de Deus e o benefício da graça obtida por um só homem, Jesus Cristo, foram concedidos copiosamente a todos. Nem aconteceu com o dom o mesmo que com as conseqüências do pecado de um só: a falta de um só teve por conseqüência um veredicto de condenação, ao passo que, depois de muitas ofensas, o dom da graça atrai um juízo de justificação. Se pelo pecado de um só homem reinou a morte (por esse único homem), muito mais aqueles que receberam a abundância da graça e o dom da justiça reinarão na vida por um só, que é Jesus Cristo! Portanto, como pelo pecado de um só a condenação se estendeu a todos os homens, assim por um único ato de justiça recebem todos os homens a justificação que dá a vida. Assim como pela desobediência de um só homem foram todos constituídos pecadores, assim pela obediência de um só todos se tornarão justos. Sobreveio a lei para que abundasse o pecado. Mas onde abundou o pecado, superabundou a graça. Assim como o pecado reinou para a morte, assim também a graça reinaria pela justiça para a vida eterna, por meio de Jesus Cristo, nosso Senhor”. (Rom 5: 12-21).

São Paulo nos disse, pois, que Cristo restaurou, através da sua redenção, o que o primeiro Adão havia perdido, a saber: o estado de santidade e justiça. O termo "recuperar" indica voltar a ter algo que se possuía previamente, mas que se perdeu. E em sentido similar podemos interpretar Ef 4:23, Col 3:10 y Ef 1:10.

Os Santos Padres são unânimes na hora de falar do estado de santidade original que gozavam nossos primeiros padres. É famosa a doutrina da recapitulação em Cristo de São Irineu [11]. Também podemos nos socorrer de Santo Agostinho, São Basílio, São Cirilo de Alexandria etc. O Magistério da Igreja ressaltou essa elevação de nossos primeiros pais em duas ocasiões principais: no Concílio de Trento (DS 1511) e no Concílio de Orange (DS 389). Ao mesmo tempo, condenou as teses dos: pelagianos (ao dizer que a graça santificante era natural aos nossos primeiros pais); protestantes (que afirmavam que a graça santificante era essencial e devida a Adão); Miguel Bayo (que dizia que a graça era uma exigência da natureza de nossos primeiros pais); e Jansen (que afirmava que a graça santificante era conveniente a Adão).

Conclusão

Tanto os dons preternaturais, como a graça santificante, foram recebidos por nossos primeiros pais e teriam sido transmitidos a seus descendentes, não fosse o pecado original.

O Concílio de Trento afirma que Adão perdeu o estado de justiça original ao cometer o pecado original, não apenas para si mesmo, mas também para nós, pelo que concluímos que, se não tivessem cometido o pecado original, os descendentes de Adão e Eva continuariam gozando de todos esses dons.

Santo Tomás apóia essas conclusões com um fundamento teológico muito próprio: diz que pela geração se transmite a natureza com seus acidentes, sendo a graça um acidente da natureza, logo seria transmitida também pela geração, embora não fossem os pais a causa dessa graça, mas Deus, que a daria no momento da criação de cada alma particular [12].

[1] Ludwig Ott, Manual de Teología Dogmática, Herder, Barcelona, 1969, pag. 360.
[2] L. F. Mateo-Seco, Conceptos básicos para el estudio de la teología, Cristiandad, Madrid, 2010.
[3] Catecismo da Igreja Católica, nn. 374-379.
[4] Santo Tomás de Aquino, Summa Theologica, Iª, q. 95, a. 1.
[5] San Agustín, De Correptione et Gratia, 11, 29 en Patrología Latina, 44, 933. Ver também em De Civitate Dei, I, 14. C. 17, 21, 23 ss.
[6] Santo Tomás de Aquino, Summa Theologica, Iª, q. 97, a. 1.
[7] Ver “Notas y censuras teológicas” en el artículo http://adelantelafe.com/jesucristo-y-el-magisterio-de-la-iglesia/
[8] Santo Tomás de Aquino, Summa Theologica, Iª, q. 95, a. 2.
[9] San Agustín, De Civitate Dei, Iib. 14, 26 em Patrología Latina 41, 434.
[10] Santo Tomás de Aquino, Summa Theologica, Iª, q. 96, a. 1.
[11] San Ireneo, Adversus Haereses, 3, 18, 1; 3, 20, 1; 4, 20, 1.
[12] Santo Tomás de Aquino, Summa Theologica, Iª, q. 100, a. 1.

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