segunda-feira, 18 de janeiro de 2016

O que houve com a música litúrgica?

Por H. L. Duncan

“…nós vamos perder uma grande porção daquela maravilhosa e incomparável realidade artística e espiritual, o canto gregoriano. Temos, de fato, razões para tristeza e até mesmo para perplexidade" (Papa Paulo VI, 1969)

Há tempos, as razões geralmente dadas para esta perda foi a mudança do Latim pela língua vernácula na Missa e o desejo de se modernizar. O Papa Paulo VI descreveu as "inovações litúrgicas do novo rito da Missa que passará a vigorar" e disse que "devemos nos preparar para essa enorme mudança" .

Faz 46 anos desde que Paulo VI tentou nos preparar paras as mudanças resultantes do Concílio Vaticano II. Ele sabia que seria difícil para muitos que teriam de se ajustar à experiência, mas seu esforço era necessário, a fim de estar a serviço do futuro dos fiéis. Ele disse "se nosso latim sagrado pode, como uma cortina, fechar as nossas fronteiras com o mundo das crianças e dos jovens, do trabalho e dos negócios diários, então não devemos nós, pescadores de homens, sermos sábios para tornar acessível esse domínio exclusivo sobre o discurso da religião e da oração"?



As turbulentas mudanças sociais que começaram pouco antes de 1962, quando o Concílio foi aberto, e a ambiguidade em alguns dos documentos do CVII, incluindo a Sacrosanctum Concilium (Constituição da Sagrada Liturgia), eventualmente permitiram que mudanças importantes tomassem lugar na Igreja. O resultado foi uma divisão ideológica dos fiéis que vemos nos dias de hoje -  "Tristeza e perplexidade" para alguns, alegria para outros.

Lemos na Sacrosanctum Concilium:

Deve conservar-se o uso do latim nos ritos latinos, salvo o direito particular…
A língua vernácula pode dar-se, nas missas celebradas com o povo, um lugar conveniente, sobretudo nas leituras e na «oração comum»... 
Tomem-se providências para que os fiéis possam rezar ou cantar, mesmo em latim, as partes do Ordinário da missa que lhes competem.…
Tenha-se em grande apreço na Igreja latina o órgão de tubos, instrumento musical tradicional e cujo som é capaz de dar às cerimónias do culto um esplendor extraordinário e elevar poderosamente o espírito para Deus.
Podem utilizar-se no culto divino outros instrumentos, segundo o parecer e com o consentimento da autoridade territorial competente, conforme o estabelecido nos art. 22 § 2, 37 e 40, contanto que esses instrumentos estejam adaptados ou sejam adaptáveis ao uso sacro, não desdigam da dignidade do templo e favoreçam realmente a edificação dos fiéis...


Uma observadora próxima

Kathy Reinheimer é fundadora e diretora do Regina Pacis Cantorum, coral de canto gregoriano da Diocese de Reno, Nevada [EUA]. Ela é uma católica de nascença e recebeu educação católica em uma escola pouco antes do fim do CVII. Ela frequentou escolas católicas tradicionais no sudeste da Califórnia, onde era exigida frequência diária à missa e cantar fazia parte da rotina do colégio. Era um tempo em que as irmãs usavam hábito. Seu pai foi diretor de coro e ela se notabilizou pela música, recebendo muitas distinções por seu conhecimento e habilidade em música sacra, mesmo sendo uma criança. Ela ainda possui uma linda voz e é uma defensora incansável do canto gregoriano no qual ela foi ensinada.

Recentemente, tive a oportunidade de falar com Kathy sobre este tema.

HL: As vezes sinto-me em casa na Missa Novus Ordo porque algumas das canções reavivam memórias da minha juventude na igreja Episcopal [Anglicana].

Kathy: Eu tive um organista na igreja Episcopal que veio certo dia e disse: "-Kathy, o que houve com a música na Igreja Católica? Vocês tinham a melhor música do mundo, mas agora parece com as demais"

HL: Você acha que havia um espírito de ecumenismo vindo do CVII ("Unitatis Redintegratio", Declaração sobre o Ecumenismo) que foi interpretado no sentido de mudar a música deste jeito?

Kathy: Absolutamente! [...] (O pensamento era que) se usássemos um pouco dessa música, isso faria com que eles (protestantes) se sentissem mais confortáveis. O que houve foi o exato oposto. 
[...] 

O que provocou o desejo por mudança?

Kathy: [...] Penso que uma das razões pela qual terminamos na bagunça que há hoje, bem como porque o Concílio ocupou-se de fazer as recomendações que fez a respeito da música sacra, foi o péssimo estado da música em geral. 

HL: Não da música em si, pois a maioria havia sido escrita anos e anos antes

Kathy: Correto... mas a sua execução... execução pode ser uma boa palavra para isso, pois a música foi realmente <executada>. Fora as grandes catedrais, ou, se você teve sorte e preparou um pequeno grupo na paróquia, ir à Missa onde há um coro se tornou uma experiência dolorosa.

HL: Isto foi universal?

Kathy: Penso que foi originalmente nos EUA, mas naquele tempo o declínio já tinha começado na Europa. Certamente na Irlanda. A Irlanda nunca foi famosa por sua proeminência na música sacra. Muito do problema tem a ver com a perseguição inglesa e irlandesa (que começou com Henrique VIII). Foi como chegamos às Missas "baixas". Antes daquele tempo, a Missa era sempre "cantada", como era pra ser. A Missa "baixa" foi o começo do fim da música sacra, pois foi quando se tornou assunto do padre e talvez ele tivesse acólitos fazendo as suas tarefas e todo o resto sentado com medo de fazer algum barulho. Eles colocavam suas vidas em risco ao ir à Missa. [...].

E sobre o talento para o canto?

HL: O que causou o declínio do talento para cantar a Missa?

Kathy: Penso que uma deficiência na compreensão do quanto isso é importante [...]. Não há catequese, nem fortes programas de música. Certamente, os há em algumas universidades, mas naquele tempo não possuíamos a mentalidade de hoje, em que todos tem de ir para a faculdade. A faculdade era apenas para os ricos e apenas na confusão dos anos 1960 se tornou mais comum. As universidades católicas eram os únicos lugares que possuíam recursos para ensinar isso. Os padres, que aprendiam canto gregoriano no seminário, certamente conheciam latim, não queriam ensinar canto quando iam para uma paróquia. Eles tinham tantas coisas para fazer naqueles dias em que o padre era mecânico, fazia manutenção, contador,  jardineiro, bem como tinha o encargo de celebrar todos os sacramentos.

HL: Então, por que as pessoas cantavam melhor em 1700 do que em 1950?

Kathy: Penso que em parte é devido ao que eles estavam cantando. Pois em 1750 as pessoas cantavam a Missa. Mas por volta do tempo que você citou, 1950, a Missa "baixa" tinha se tornado predominante. Quando criança, indo para a minha paróquia, se alguém viesse acender as grandes velas do altar, todos diziam "Oh, não, pois o pe. O'Brian não consegue levar uma melodia". Ele era um sujeito legal, mas era penoso ir para uma de suas missas. As pessoas assistiam Missas "baixas", e isso significava que haveria apenas hinos. Elas cantavam alguns hinos católicos tradicionais, que até tinham uma boa teologia, mas se você tinha uma Missa Cantada no final de semana era muito.


O que perdemos?

HL: Então, seguindo este raciocíio, no tempo em que havia muitas Missas Cantadas, a experiência de cantar as Missas era uma parte do cotidiano. Quando elas diminuíram, então as pessoas perderam a aptidão, o talento, mesmo que a música fosse complicada.

Kathy: Certo, mas ela não era [complicada]. As partes da Missa no canto gregoriano... o Ordinário da Missa... foram compostos pelas assembléias, elas eram bastante simples, fáceis de cantar, os fiéis as conheciam na Idade Média.

HL: Hoje somos sortudos se podemos ao menos dizer as respostas

Kathy: Isso é impressionante para mim... às vezes a Igreja opta pela Missa VIII. Há 18 Missas completas em canto gregoriano, a Missa XVIII é a Missa de Requiem. Há uma série de Kyrie, Sanctus e Agnus Dei que não fazem parte de uma Missa completa. Uma das razões para esta escolha é que, quando você escuta o coro da Capela Sistina, eles cantam a Missa VIII. É uma composição do Século XVII, é um pouco tarde, uma vez que as composições de canto gregoriano estão em baixa [neste período]. É sem dúvida a mais complexa de todas as Missas. Tem uma vasta extensão e é difícil de cantar... por que não se faz a Missa XI, muito mais simples e bonita... A resposta que ouço é que não se canta porque nós [os fiéis] não conhecemos.


Em que estado nos encontramos hoje?

HL: Onde você pensa que nos encontramos hoje? Você está otimista, pessimista ou indiferente?

Kathy: Certamente, não estou indiferente quanto a isso, penso que estamos indo em ambas as direções. Muito depende do que os bispos locais querem, que treinamento tiveram. Veja o Arcebispo Cordileone, que está apanhando, e as mudanças maravilhosas que fez na liturgia em São Francisco, ele está tendo um impacto positivo no seminário. ele ampliou o uso da Forma Extraordinária da Missa (Missa Tridentina) para mais paróquias, ensinou mais padres... Ele voluntariamente celebra na Forma Extraordinária. Um amigo meu foi fundamental em ensinar tudo o que ele sabe sobre liturgia e música sacra. Quando o Arcebispo Corleone era bispo auxiliar em São Diego, ele me disse que isso nunca havia sido ensinado no seminário.

Mas, olhe para outras dioceses em que o bispo não teve o privilégio de encontrar algum conselheiro do tipo, eles permanecessem seguindo por este caminho, onde os coros foram desmantelados, o canto gregoriano é virtualmente proibido. Ao mesmo tempo, eu vejo pontos brilhantes de Scholae surgindo por todo o país.

HL: Isso ainda depende dos ordinários locais.

Kathy: Meu coro, que eu avalio que seja um coro muito bom, funciona com as bênçãos do bispo, embora sejamos independentes. Tudo o que ele precisa fazer é enviar uma mensagem para todas as paróquias dizendo que o Regina Pacis não é mais bem vindo, apenas isso.Graças a Deus, ele não fez isso, mas há outros lugares que não tiveram a mesma sorte. Há muitas paróquias que começaram a seguir uma caminhada quando Bento XVI era Papa. Agora, penso que todos estão aguardando para ver que rumos as coisas vão tomar. Contudo, o Cardeal Sarah, que é Prefeito da Congregação para o Culto Divino, nas últimas semanas disse que recebeu instruções do Papa Francisco para que continue os esforços iniciados por Bento XVI. As pessoas se sentem um pouco melhor. São, de fato, boas notícias.

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