sexta-feira, 2 de outubro de 2015

A paixão litúrgica de Joseph Ratzinger


“A relação entre mistério acreditado e mistério celebrado manifesta-se, de modo peculiar, no valor teológico e litúrgico da beleza. De fato, a liturgia, como aliás a revelação cristã, tem uma ligação intrínseca com a beleza: é esplendor da verdade (veritatis splendor).” – Bento XVI. Sacramentum Caritatis. São Paulo – SP: Loyola, 2007. Parte II, 35, p. 43 – 44. (Coleção “Documentos do Magistério”). [Exortação apostólica pós - sinodal dada em Roma em 22 de fevereiro de 2007].



Apresentação

Um dos grandes diferenciais do teólogo alemão Joseph Ratzinger (1927 -) está na sua capacidade de relatar os seus momentos de reflexão. Geralmente são nestes momentos em que ele se torna contemplativo e consegue captar o que há de melhor na sua religião. Neste texto, exponho minhas anotações acerca de alguns relatos em que Ratzinger descreve como via a liturgia em sua infância. São relatos interessantes, que me chamaram a atenção por sua vivacidade e originalidade. No tempo em que a grande maioria das crianças não refletem sobre temas litúrgicos, vemos o infante Ratzinger sendo impactado pela liturgia católica.



I – A Descrição de Ratzinger Sobre a Liturgia em sua Infância

Não há dúvidas de que a liturgia teve grande impacto na infância de Joseph Ratzinger (1927 -). Este fato, ele deixou claro em 1996, quando foi entrevistado pelo jornalista alemão Peter Seewald (1954 -). O livro derivado dessa entrevista se chamou “O Sal da Terra”. Seewald perguntou: “Para o senhor, o que era fascinante na fé, quando era jovem?”. Eis a resposta de Ratzinger: “Tive desde o início – creio que com meu irmão e minha irmã se passou o mesmo – muito interesse pela liturgia. Meus pais já tinham comprado meu missal [1] na segunda série. Era interessantíssimo entrar nesse mundo misterioso da liturgia latina e descobrir o que, afinal, acontecia ali, o que significava, o que se dizia ali.” [2] À vista desta resposta, o filósofo e teólogo espanhol Pablo Blanco Sarto (1964 -), reconhece que, “Sem dúvida, a liturgia constitui para Ratzinger outra paixão de infância.” [3]Ratzinger confirma isso quando, na continuidade da entrevista, afirmou que “Depois fascinaram-nos [a ele e ao seu irmão], naturalmente, as festas litúrgicas, com a música, toda a decoração e todas as imagens. Este é um aspecto cativante.” [4] Mas, por que um ritual teve tanto impacto sobre a vida de Ratzinger quando ele era criança, e depois, na sua juventude? De acordo com Sarto, talvez seja porque “A arte e a liturgia estimularam a sua curiosidade infantil, enquanto ele ia descobrindo a riqueza das orações litúrgicas, graças também ao missal dos fiéis que lhe deu seus pais.” [5] Aqui vemos uma criança que se sente impressionada com o esplendor litúrgico que a cerca, e que busca respostas não apenas estéticas para ele, mas também racionais. Aqui vemos rituais religiosos servirem para levar uma criança a raciocinar e a continuar com este processo em sua vida juvenil. Confirma isto Ratzinger, quando afirma: “... desde o princípio, também me interessei racionalmente por tudo o que se dizia na religião. Fui conduzido, por assim dizer, passo a passo, no meu próprio pensamento.”[6]
Entendo que essas palavras de Ratzinger (1927 -) são interessantes, principalmente porque demonstram como a religião bem praticada na infância e juventude terão bons efeitos sobre toda a vida de um indivíduo. Não me refiro aqui a religião forçada e obrigada, mas a religião em que o indivíduo se entrega desde a infância de maneira autentica e consciente.

II – A Comparação da Liturgia Com os Joguinhos Infantis

Quando li o relato da paixão litúrgica que Joseph Ratzinger (1927 -) já tinha na infância, não pude deixar de liga-lo a uma comparação que o próprio teólogo alemão fez tempos depois na obra Introdução ao Espírito da Liturgia. Neste livro, Ratzinger retoma o título da importante obra de Romano Guardini (1885 – 1968), um teólogo católico de origem alemã, para ampliar as suas ideias e aplica-las na realidade pós-concílio Vaticano II (1962 – 1966). Tracey Rowland, especialista na teologia de Ratzinger, explica:

Um dos primeiros livros que [Ratzinger] leu, após começar seus estudos teológicos em 1946, foi O Espírito da Liturgia de Guardini, publicado na Páscoa de 1918. No ano 2000, Ratzinger publicou seu próprio livro, com o mesmo título, no qual reiterou os princípios litúrgicos centrais de Guardini, mas à luz dos problemas litúrgicos da época atual. [7]

No primeiro capítulo desta obra, Ratzinger (1927 -) diz que na década de 1920 começou a ser comum comparar a liturgia a um jogo. Eram duas as explicações. Na primeira, se dizia que como um jogo tem as suas regras e cria um mundo particular enquanto se está nele, a liturgia faz o mesmo. Na segunda, se dizia que como um jogo funciona como algo terapêutico ou liberatório, pois faz sair da pressa do cotidiano e do que oprime no trabalho, a liturgia também tem este poder de libertar de tudo o que oprime e também da rotina do trabalho. Ratzinger gosta desta comparação, mas trata logo de impor limite a ela: “Nessa linha de raciocínio há algo de verdade, mas só essa constatação não basta.”[8] De acordo com ele, apenas comparar a liturgia a um jogo deixa a questão muito vaga, porque a generaliza. Uma pergunta essencial, isto é, de que jogo estamos falando?, não seria corretamente formulada. Também há o fato de que um jogo logo pode virar algo mecânico, por se tornar a própria realidade para certas pessoas.
Sabendo destas limitações, Ratzinger (1927 -) prefere restringir este princípio comparativo aos jogos de brincadeiras das crianças. Ele afirma que os jogos infantis, sob forma de brincadeiras, podem ser tidos como antecipação da vida, ou treinamento que as prepara para o futuro. Da mesma forma ocorre com a liturgia, pois ela nos prepara para a verdadeira vida que desejamos alcançar. Nesse raciocínio,

A liturgia seria, então, a redescoberta de nosso autêntico ser criança dentro de nós, da abertura para a grandeza que temos diante dos olhos, ainda não realizada com a vida adulta; ela seria uma forma bem definida da esperança, que antecipa a verdadeira vida, que nos introduz na vida autêntica – a da liberdade, da proximidade com Deus e da total abertura recíproca. [9]

Mais à frente, Ratzinger (1927 -) faz a mesma comparação com o ato de culto. Segundo ele, o culto é também uma antecipação do porvir. Por isso,

Uma vida onde falta essa antecipação, onde o céu não é mais esboçado, se torna nebulosa e vazia. Por isso não existem sociedades totalmente privadas de culto. Até os sistemas firmemente ateístas e materialistas constituíram novas formas de culto, que resultam, todavia, apenas ilusórios e que procuram inutilmente esconder a própria nulidade com sua bombástica fanfarronice. [10]

Já como Papa Bento XVI, Ratzinger tem os mesmos princípios ao declarar, na exortação Apostólica Pós-Sinodal Sacramentum Caritatis, que A beleza da liturgia pertence a este mistério; é expressão excelsa da glória de Deus e, de certa forma, constitui o céu que desce à terra.” [11] Alhures, conclui:

... a beleza não é um fator decorativo da ação litúrgica, mas seu elemento constitutivo, como atributo do próprio Deus e da sua revelação. Tudo isto nos há de tornar conscientes da atenção que se deve prestar à ação litúrgica para que brilhe segundo a sua própria natureza. [12]

Considerações Finais

Nesse texto busquei demonstrar que é há grande importância em ter princípios que venham da infância, pois, se eles transformam o interior do indivíduo de verdade, serão lembrados até a vida adulta, como aconteceu na descrição acima de Joseph Ratzinger (1927 -). Também é notório o respeito que o indivíduo concede à sua experiência religiosa infantil, tendo nela boas e atuais recordações.




NOTAS:

[1] Aqui cabe explicar o que é um missal. Nas palavras do próprio Ratzinger (1927 -): “É um livro que o padre utiliza no altar para celebrar a missa. Existe também em edições e formatos menores para os fieis, traduzido para a língua de cada país.” (Ratzinger, Joseph.  O sal da terra: o cristianismo e a Igreja Católica no limiar do terceiro milênio (Um diálogo com Peter Seewald).  Tradução de Inês M. de Andrade.  Rio de Janeiro – RJ: Imago, 1997.  p. 41).
[2] Ibid.p. 41.
[3] “Es indudable que la liturgia constituyó para Ratzinger otra pasión de la infancia.”. (Sarto, Pablo B.  La Teología de Joseph Ratzinger: una introducción.  2ª. ed.  Madrid: Ediciones Palabra, 2011.  p. 60.  (Colección: Pelícano)).
[4] Joseph RatzingerO sal da terra: o cristianismo e a Igreja Católica no limiar do terceiro milênio (Um diálogo com Peter Seewald), p. 41.
[5] “El arte y la liturgia estimulaban su curiosidad infantil, a la vez que iba descubriendo la riqueza de las oraciones litúrgicas, gracias también al misal de los fieles que le regalaron sus padres”(Pablo B. Sarto, La Teología de Joseph Ratzinger: una introducción, p. 60).
[6] Joseph RatzingerO sal da terra: o cristianismo e a Igreja Católica no limiar do terceiro milênio (Um diálogo com Peter Seewald), p. 41 – 42.
[7] Rowland, Tracey.  A fé de Ratzinger: a teologia do Papa Bento XVI.  Tradução de Carlos P. Alonso.  Campinas – OS: Ecclesiae, 2013.  p. 171.
[8] Ratzinger, Joseph (Bento XVI).  Introdução ao espírito da liturgia.  Tradução de Silva D. C. Reis.  3. ed.  São Paulo – SP: Loyola, 2014.  p. 11.
[9] Ibid., p. 12.
[10] Ibid., p. 17 – 18.
[11] Bento XVI.  Sacramentum Caritatis.  São Paulo – SP: Loyola, 2007.  Parte II, 35, p. 44.  (Coleção “Documentos do Magistério”).  [Exortação apostólica pós - sinodal dada em Roma em 22 de fevereiro de 2007].
[12] Ibid., Parte II, 35, p. 44 – 45.

Nenhum comentário:

Postar um comentário